O tal do Europarque
Nasci nas Caldas de São Jorge, uma das freguesias do concelho de Santa Maria da Feira. O tal do Europarque. Dos congressos, exposições, concertos e de uma Cimeira Europeia que aí se realizou num já remoto mês de Junho. A Santa Maria da Feira do certame de cinema luso-brasileiro (entretanto extinto), do festival de música do mundo “Sete Luas e Sete Sóis”, do festival de artistas de rua “Imaginarius” e da famosíssima Feira Medieval. Mas também a Santa Maria da Feira, concelho, onde muitas das pessoas não sabe bem qual a qualidade da água que consomem…
Optei por mencionar como elemento de contraste iniciativas culturais e um acontecimento político. Aquelas, merecem-me o maior respeito e consideração. O acontecimento político, nem me aquece nem me arrefece. E fi-lo propositadamente, para não ser tão gritante o antagonismo. É que neste município, onde se concentra a indústria de processamento de cortiça e de onde são originários magnatas como Américo Amorim e Ludgero Marques, os riscos de saúde pública foram (e continuam a ser) mais do que muitos. E isso, devido às águas contaminadas provenientes de poços e de furos. Contaminação provocada por uma rede industrial que se alastrou como quis e pôde durante anos e anos de barbárie sem a mínima justificação a quem quer que fosse.
“Pedimos desculpas pelo incómodo. Trabalhamos para o seu bem-estar”. Bem me lembro de ver placas com tais dizeres junto às estradas um pouco por todo o concelho, antevendo uma série de obras que se prolongariam até 2006. Altura em que, teoricamente, noventa e cinco por cento da população ficaria servida por uma rede de água e esgotos. Enfim, o bê-a-bá de qualquer povoação europeia. Não obstante, ao apresentar o projecto o presidente da edilidade fê-lo como se de um feito se tratasse. E se calhar tinha razão. É que levar a água e esgotos à casa dos contribuintes apenas no dealbar do século vinte e um, e logo numa região onde frutificam algumas das maiores fortunas pessoais do País e onde se assiste a uma das maiores concentrações de Ferraris por metro quadrado, foi de facto um feito digno de constar no livro de recordes do Guinness. Falou-se mesmo num “salto qualitativo na vida dos feirenses”, que custou uns redondinhos “35,5 milhões de contos”. Números que obrigaram a câmara, confrontada com as limitações do orçamento, a fazer a maior concessão de abastecimento de água e esgotos à iniciativa privada alguma vez realizada em Portugal.
Soma astronómico ou não, o certo é que tudo isto seria, de facto, admirável se tivesse sido realizada uns dez ou quinze anos antes. Havia dinheiro para tal, e já então as populações estavam necessitadas. No ano 2000, tal tarefa, por mais titânica que fosse, só podia soar a obrigação.
Recuemos quatro décadas. Na altura, eu e um reduzido grupo de amigos, congregados em torno de um projecto de características culturais, desportivas e ecológicas, denominado “A Maralha”, não éramos lá muito bem vistos pelos empresários da indústria de acessórios para bebé, cujo epicentro se situava precisamente nas Caldas de São Jorge. Os patrões das empresas mais significativas da indústria em questão, protagonistas tanto a nível nacional como internacional, não gostaram nada de ver aparecer na aldeia uma equipa de televisão e a deputada Zita Seabra, na altura a representante do PCP pelo distrito de Aveiro. Estava lá por nossa solicitação (o convite foi feito a todos aos partidos, só que mais nenhum deles se fez representar) com base nos resultados positivos de uma série de análises laboratoriais a que mandáramos submeter as águas de alguns poços da região. Como ficou provado, algumas dessas águas, não só estavam impróprias para consumo como continham elementos químicos capazes de provocar doenças graves, e até mesmo a morte. O que chegou a acontecer a diversas crianças, que durante anos beberam inocentemente o precioso líquido. Na época, casos destes não tinham grande repercussão, ao contrário do que agora acontece. E a coisa acabou por passar meio despercebida. O certo é que, nem eu nem os meus amigos, assim como os restantes conterrâneos, não necessitámos de aguardar pelos resultados das análises. Aprendemos a crescer com o cianeto à mão de semear. Em Caldas de São Jorge, os banhos da niquelagem saíam das fábricas em torrentes por buraquitos manhosos e corriam a céu aberto até desaguarem no rio Uíma. Afluente do Douro, que viu os seus reputados cardumes de bogas e de trutas dizimados em poucos meses. Podiam seguir-se os traços do veneno aos fins-de-semana, quando as valas por onde corria o cianeto secavam deixando um arco-íris de cores macabras à mistura com a caruma do pinheiro e as folhas de eucalipto. Um veneno que lentamente se infiltrava na terra, atingindo irremediavelmente os lençóis freáticos. Este crime ecológico e grave atentado à saúde pública continuou impune durante anos a fio. Entretanto, houve quem amealhasse uma boa maquia à custa do que poupavam por não construírem as adequadas, e teoricamente obrigatórias, estações de tratamento.
E quem ousaria protestar, inscrever o seu nome num abaixo-assinado? Ninguém. Quase todos tinham alguém da família a trabalhar nessas fábricas. Na época, o sector ocupava oitenta por cento da população activa das Caldas de São Jorge e das povoações em redor. Quantos campos de cultivo foram abandonados devido a isso…
É certo que desde então as coisas mudaram. As fábricas, umas após as outras – algumas mais ao empurrão da obrigação comunitária do que por vontade própria – foram construindo as respectivas estações de tratamento. As perspectivas de emprego multiplicaram-se e o torno e a pintura deixaram de ser a única alternativa a todo o jovem que não prosseguisse com os seus estudos. Os cardumes de bogas e de trutas, esses, é que nunca mais regressaram, se bem que haja agora um ou outro sinal de vida no rio. O Uíma, que os romanos e povos proto-históricos tão bem souberam aproveitar, através da edificação de moinhos e aproveitamento medicinal das águas sulfurosas existentes perto das suas margens, é que nunca mais foi o que era.
Ocorre-me falar disto a propósito do país que as televisões nos mostraram a semana passada graças à louvável iniciativa presidencial de Marcelo Ribeiro de Sousa. Certo estou que se o Presidente em vez de se ter posto a caminho rumo ao terreno calcinado e às aldeias das vidas desfeitas, tivesse ficado resguardado no Palácio de Belém (é o que teria feito Cavaco Silva), as televisões não se preocupariam em ir registar o país real, que contrasta escandalosamente com o das estatísticas. Infelizmente, não são apenas as matas desprotegidas e mal geridas, os óbvios sinais de subdesenvolvimento de que Portugal padece.
Fiquemo-nos pelos factos. E agora falo do presente. O concelho de Santa Maria da Feira é dos mais ricos do País. E, no entanto, a nível de infraestruturas está tudo por fazer. As estradas locais continuam esburacadas, remendadas, esburacadas de novo, manhosas, mais miseráveis do que nunca. A especulação imobiliária, não fôra a crise, teria seguido de vento em popa, pois foram muitos os empreiteiros que por estas bandas prosperaram, construindo onde e como queriam. Enfim, a paisagem humana e natural ficou irremediavelmente descaracterizada. Seria preciso demolir um sem número de abortos arquitectónicos para poder reabilitar a antiga beleza das históricas terras de Santa Maria da Feira. Com o seu castelo de ameias piramidais, único em toda a península, onde viveu o conde D. Henrique e o seu filho Afonso, futuro rei de Portugal. Com as suas quintas e solares; estradas e pontes romanas. As igrejas matrizes, que ainda recordo, dos tempos da meninice. Antes dos milionários o serem.
Sorte têm as freguesias com nativos milionários orgulhosos delas. Desses que, por amor à terra, investem no bem de todos. E na boa reputação da terra que os viu nascer. O que está longe de acontecer no concelho de Santa Maria da Feira. Ali aplica-se bem a máxima do “vivemos num país de encher o olho (leia-se Europarque), mas continuamos um atraso de vida”.
Joaquim Magalhães de Castro