O Nosso Tempo

A natureza e a mão humana

Incêndios em Portugal. Mais uma tragédia, esta atrasada. O fatalismo de forças que não compreendemos e por isso não dominamos, ou o sinistro desígnio de mentes doentes e ou criminosas?

Desde o Verão que os ouvíamos e víamos, os canadair, sobrevoando a baixa altitude as nossas casas os ventres bojudos repletos de água, para ser despejada um pouco mais adiante nesses pontos de fumo que vislumbrávamos ao longe.

Dizem-me agora os parentes, na minha aldeia beirã, que a tragédia nos visitou também, há quinze dias exactamente, queimando árvores que viram crescer muita gente nossa; esterilizando a terra que gerações sucessivas cultivaram; e lambendo as casas no centro da aldeia.

Perante tal desolação, os olhos erguem-se para quem lá em cima comanda os nossos destinos, numa muda interrogação. Procuram-se respostas. Uns intuem explicações dentro de si. Para a maior parte, porém – só o silêncio. E o silêncio é penoso.

Os incêndios, como outras calamidades naturais, acentuam em cada um o sentimento de vulnerabilidade, perante o imprevisto e o que é muito mais forte que nós.

E essa vulnerabilidade tem dois efeitos: o de nos retirar a capa das falsas protecções que nos vamos forjando; e o de nos colocar no exacto lugar que a nossa simples humanidade diz que é o nosso.

Procuram-se apoios, procuram-se âncoras. No céu e na terra. Por isso o olhar vai também para mais perto, para quem exerce o poder.

De repente, é o arregaçar de mangas: a política desce do pedestal “das pessoas importantes” – e do jogo com que se entretêm, a astúcia de uns contra a artimanha de outros – para tocar o essencial que é o serviço da comunidade.

E assim a política converte-se, de competição entre os mais “espertos”, em emulação entre os mais úteis.

E, numa inversão momentânea da escala das importâncias, passa a ser mais relevante quem mais ajuda, desde o Presidente da Câmara de mangueira em punho, até aos populares que, lado a lado com os bombeiros, exaustos e em número insuficiente, vão atrás dos fogos que a espaços se reacendem.

Daqui de longe, sente-se como nunca a cadeia de solidariedade de gente concreta, com rosto, com nome, com voz. É com tais sentimentos que se forjam de facto os laços de pertença a cada comunidade.

 

Um novo ciclo

Ouvindo o Presidente da República, na sua última mensagem ao País, proferida em Oliveira do Hospital, e com Marcelo Rebelo de Sousa ciente de que manifestantes junto ao Palácio de Belém lhe pediam acção, disse para comigo mesmo que se entrou, em Portugal, num novo ciclo político, apesar de estarmos a meio da legislatura.

Ciclo político novo, dominado não já pelas incertezas de uma frágil coligação parlamentar, apoiando o executivo, mas pela nova urgência de agir, perante a dupla tragédia deste Verão que se eternizou, já bem fora de época.

O modo como Marcelo se comprometeu de novo, de forma tão pessoal, perante a comunidade nacional, na solução de problemas considerados estruturais, reiterando, por assim dizer, o solene compromisso de honra do seu mandato, não lhe deixaria margem para recuos… se quisesse recuar. Mas não quer.

A abeirar-se dos setenta anos, o “velho” Marcelo, isto é, o de antes de Belém, o táctico, brilhante “antecipador” de eventos, num permanente jogo intelectual que lhe dava um evidente prazer íntimo, desapareceu. Sim, sumiu-se, está congelado nos arquivos de vários canais televisivos, de quando dava notas aos políticos e era o professor da Nação. E foi substituído pelo “novo” Marcelo, o estratego do bem comum, de que deixará marca, não só como Presidente, mas como Pessoa. Assim o pretende e assim conseguirá, creio sinceramente.

A maior inteligência na sua, na nossa idade, é a de perceber(mos) que o tempo está a passar depressa. E que a política, como qualquer outra actividade humana, se inscreve no percurso pessoal de cada um, passando a orientar-se pelo bater inexorável dos ponteiros do relógio.

Assim, por causa da urgência de Marcelo em querer acudir quem precisa, ouvindo o clamor de tanta gente que contacta; e essa outra urgência de cumprir o que impôs, o mais depressa possível, no tempo limitado de que dispõe, nos poucos anos que lhe restam – o Governo de António Costa não terá, da parte da Presidência, dias nada fáceis.

Por isso falou Marcelo de um novo ciclo, que o será principalmente no campo da exigência.

O relacionamento institucional entre Belém e São Bento dar-nos-á indicação do grau de cumprimento das metas que o País espera e de que o Presidente se assumiu como garante.

Tal afectará hábitos e rotinas. Assim se espera. Belém não será um aliado complacente, como estou certo de que não tem sido. E quanto ao Governo, ele próprio sob escrutínio público, os piores inimigos são igualmente o tempo. E de gente, principalmente de fora.

Quero eu dizer que, mais do que uma oposição parlamentar, com um discurso crítico congelado em velhas fórmulas oratórias, de efeito fácil, o Primeiro-Ministro, de cuja boa vontade não tenho o direito de duvidar, terá que combater, com as suas medidas concretas, o que de pior nos caracteriza, como povo. E o que é?

Além de uma má organização de recursos, a prática demasiado generalizada da negligência e da impunidade. E a teimosa sobrevivência, por via de obscuras protecções, de múltiplos interesses instalados.

 

Depois do luto

Depois do luto – é a indignação que pode manter viva a memória dos que partiram e não abrandar a vigilância, quanto ao trabalho por fazer.

E aqui volto ao Presidente da República, que demonstrou já que pode ser e é uma das âncoras do navio, açoitado pelas vagas da desgraça.

E mais do que a formalidade da função, é o homem, a pessoa, em quem se quer confiar – e a esmagadora maioria confia.

Mas o “ver para crer” será a atitude mais comum. A vida ensinou os mais pobres que os milagres, raros vindos do céu, quase nunca britam da terra.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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