Bento XVI, o Papa “Profeta”
No mês em que passam dez anos sobre a eleição de Bento XVI, a Família Cristã olhou para trás e foi à procura do legado do Papa emérito. Um homem com uma capacidade invulgar de antecipar os tempos e de perceber a direcção que a Igreja e o mundo iriam trilhar no seu caminho.
Todos estranharam quando, em Abril de 2005, um ancião assomou à janela da varanda da Basílica de São Pedro, em Roma. Joseph Ratzinger tinha 78 anos e uma fama de conservador e tradicionalista que não augurava uma sucessão digna do grande Papa das multidões que tinha sido João Paulo II. Oito anos depois de ter sido eleito, Bento XVI renunciou ao cargo, numa decisão invulgar que revelava uma clareza de espírito elogiada por muitos dos que, no inicio do pontificado, tinham criticado a escolha, e deixou um legado que só agora se começa a compreender.Foi essa clareza de espírito que levou muitos a elogiarem o pontificado deste Papa, confiando que «a história vai olhar para Bento XVI de forma diferente daquela que nós olhámos», conforme era a opinião do monsenhor José Bettencourt, chefe de Protocolo da Secretaria de Estado da Santa Sé, nomeado para o cargo por Bento XVI, um colaborador próximo do Papa e profundo conhecedor das suas características.
De facto, olhando para o magistério de Bento XVI, é possível desde já perceber a capacidade invulgar que o Papa teve de ler os tempos e de prever a evolução da sociedade, principalmente quando nos focamos nos seus escritos e atitudes.
Um ano após a eleição, Bento XVI foi convidado pela Universidade de Ratisbona, onde tinha sido professor, para uma conferência que se tornou tão polémica quanto profética. «Não agir segundo a razão é contrario à natureza de Deus», afirmava Bento XVI na altura, criticando a Jiade, a guerra santa que o Islão faz. «A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar correctamente, e não da violência nem da ameaça… Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa…», dizia o Papa na altura, citando um diálogo entre o imperador bizantino Manuel II e um interlocutor persa publicado pelo professor Tehodore Khoury, da Universidade de Munique. O discurso suscitou polémica entre os responsáveis muçulmanos, mas faz ressonância nos dias de hoje, em que grupos radicais islâmicos, nomeadamente o autoproclamado Estado Islâmico, na Síria e no Iraque, e o Boko Haram, na Nigéria, usam os seus fundamentos religiosos para justificarem os massacres de cristãos e minorias muçulmanas inocentes, entre outros, e a destruição de monumentos e documentos de valor único na história da Humanidade. Hoje, nove anos depois, este é um discurso actual, que encontra eco nas declarações de muitos dos principais líderes religiosos e políticos, um eco que, há nove anos, não existia, tal foi o coro de críticas que se levantou contra Bento XVI.
Corria o ano de 2009 quando, em Julho, Bento XVI publicou a sua terceira e última encíclica, “Caritas in veritate”. Um documento extenso e promulgado numa altura crítica: o mundo estava a começar a sofrer o choque da crise imobiliária nos Estados Unidos, cuja bolha rebentou, deixando bancos e instituições financeiras à beira do colapso. As noticias da crise trouxeram um impacto muito maior à publicação desta encíclica que avisava, no seu interior, que, sem a Verdade, «a actividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade». Nem de propósito, os anos seguintes afundaram a Europa numa profunda crise, e todos começaram a falar da necessidade de olhar para o individuo, não para a economia, dando prioridade na economia actual ao Homem.
A «mudança de mentalidade que nos leve a adoptar novos estilos de vida» é uma teoria que tem vindo a ganhar cada vez mais adeptos, mas que se encontrava apenas numa minoria dos fazedores de opinião aquando da publicação da encíclica, pelo que também aqui Bento XVI foi dos primeiros líderes mundiais com peso a falar no respeito pelo ambiente e na necessidade de regular o consumo de recursos nos países desenvolvidos para garantir que os mesmos chegam aos países em vias de desenvolvimento. Actualmente, são muitos os líderes e as instituições que se começam a organizar nesse sentido, seja através de legislação que vise o desenvolvimento da produção local, seja através de práticas de comércio justo. Tudo em busca do «bem comum», um conceito lançado por Bento XVI na encíclica que está ancorado no dom do Amor, ferramenta essencial que ainda nem todos os líderes assumiram como indispensável nas suas acções.
Durante o seu pontificado, Bento XVI proclamou o Ano Paulino, o Ano Sacerdotal e o Ano da Fé. Todos foram importantes, mas um foi particularmente profético. Proclamado em 2010, o Ano Sacerdotal visava reforçar a importância dos sacerdotes na Igreja, mas também orientá-los para o que deveria ser o seu múnus sacerdotal. Para surpresa de muitos, principalmente da ala conservadora da Igreja, à qual, em teoria, todos diziam que Bento XVI pertencia, o modelo que o Papa de então escolheu como patrono dos sacerdotes foi São João Maria Vianney, um sacerdote “do povo”, pouco erudito, que dedicou a sua vida ao ministério junto das suas ovelhas. Não era um académico ou alguém com grandes conhecimentos eruditos, mas era alguém próximo do povo.
Depois de ler estas linhas, torna-se clara a intenção profética de Bento XVI, que se revela no pontificado do Papa Francisco, que tanto tem pedido «pastores com cheiro de ovelhas». «Os métodos pastorais de São João Maria Vianney poderiam parecer pouco adequados para as condições sociais e culturais hodiernas. Com efeito, como poderia imitá-lo um sacerdote hoje, num mundo tão transformado? Se é verdade que mudam os tempos e muitos carismas são típicos da pessoa, portanto irrepetíveis, há porém um estilo de vida e um anseio fundamental que todos somos chamados a cultivar», dizia Bento XVI numa audiência-geral em Agosto de 2009, dedicada à figura do Cura d’Ars. A convocação do Ano Sacerdotal serviu ainda para reforçar a importância da figura do sacerdote na Igreja, figura essa que iria ser abalada, algum tempo depois, pelos casos de pedofilia, num dos tempos mais conturbados da Igreja nas últimas décadas. «O ensinamento que o Santo Cura d’Ars nos continua a transmitir a este propósito é que, na base de tal compromisso pastoral, o sacerdote deve pôr uma íntima união pessoal com Cristo, a cultivar e aumentar dia após dia. Só se for apaixonado por Cristo, o sacerdote poderá ensinar a todos esta união, esta amizade íntima com o Mestre divino, poderá sensibilizar os corações das pessoas e abri-los ao amor misericordioso do Senhor, poderá infundir entusiasmo e vitalidade nas comunidades que o Senhor lhe confiar», dizia nessa mesma audiência-geral Bento XVI, numa mensagem que serviu como uma luva aos sacerdotes não só durante esse ano, mas como ensinamento para toda a sua vida pastoral, tal como é hoje visível na figura e no discurso do Papa Francisco, cujo caminho foi preparado de forma tão clara por Bento XVI.
O tema do relativismo e do abandono das raízes cristãs que a Europa moderna esta a tentar promover em alguns sectores foi também uma preocupação de Bento XVI, que já vinha dos tempos em que era cardeal. «Não é qualquer união política ou económica dentro da Europa que enquanto tal, significa já o futuro europeu. Uma simples centralização de competências económicas e legislativas pode também levar ao desmantelamento acelerado da Europa, como, por exemplo, se conduzisse a uma tecnocracia cujo único padrão fosse o aumento do consumo», disse enquanto cardeal alemão em 1979, durante o congresso “A Europa e os Cristãos”, uma visão que, hoje, é partilhada por todos quantos criticam o falhanço das politicas económicas e dos modelos económicos que conduziram a crise que afecta a Europa e o mundo.
Mais tarde, o ainda cardeal Ratzinger afirmou, numa conferência publicada em 1991 no livro “A Igreja e a Nova Europa”, que «um Estado que por princípio se queira agnóstico em relação à religião e a Deus e que funde o Direito apenas sobre a opinião da maioria, tende a reduzir-se interiormente ao nível de uma associação de malfeitores». Já como Papa, Bento XVI afirmava ao mundo da cultura de Paris, em 2008, que «uma cultura meramente positivista que relegasse para o âmbito subjectivo, como não científica, a pergunta acerca de Deus, seria a capitulação da razão, a renuncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, o descalabro do humanismo, cujas consequências não deixariam de ser graves». Uma coerência de pensamento que está alicerçada numa visão do futuro da Europa que não pode deixar de passar pela junção da Fé e da Razão. Aliás, Bento XVI dizia várias vezes que «quem procura a Verdade chega à Fé», razão pela qual afirmou a necessidade de criar consciência nas pessoas, uma consciência fundada na razão de uma fé explicada. «É nossa responsabilidade tornar de novo audíveis e compreensíveis entre os homens estes critérios [de distinção entre o Bem e o Mal] como caminhos da verdadeira humanidade, no contexto de preocupação pelo homem em que estamos imersos», dizia no seu discurso à Cúria em Dezembro de 2010.
Estas e outras visões marcaram o pontificado de Bento XVI. Há dez anos era eleito «o Papa certo para os tempos da Igreja», conforme dizia à Família Cristã o cardeal Saraiva Martins, prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos, em 2013, quando Bento XVI resignou. Muito elogiado por ser uma pessoa que lia os tempos como ninguém, terá sido de facto um Papa profeta, ao perceber antes de todos o caminho que a Igreja e a sociedade iam levar?
Ricardo Perna