Uma obra em forma de diálogo
A actualidade e pertinência cultural do De Missione Legatorum, obra Seiscentista do jesuíta Duarte de Sande, foi tema de uma conversa que em tempos tive com o professor Luís Filipe Barreto, antigo director do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, cujo excelente museu – o único dedicado à história de Macau fora da República Popular da China – é motivo suficiente para uma demorada e atenta visita a esta instituição.
O De Missione Legatorum seria impresso “no Porto de Macau, no Reino da China, em 1590”, como relatam os anais da época, e a partir de Macau a edição latina circularia bastante, quer na Europa, quer na América. E com grande impacto!
De Missione Legatorum é obra escrita em diálogo, sobre diferentes temas, que, no entender do prestigiado investigador português, nos remete «para o movimento Erasmiano e para o Humanismo». Nesse livro, o padre Sande propõe a ideia de que o mundo é composto por duas grandes civilizações praticamente equivalentes. De um lado, a Europa católica cristã, apostólica romana. Do outro, a China imperial, e ainda o Japão, muito próximo dela. E depois, o resto do mundo em graus de desenvolvimento, de criação e civilização menores. É, na verdade, uma espécie de estratégia para tentar dizer às elites culturais e políticas japonesas que a Europa pode ser uma das outras dimensões de raiz e uma das outras dimensões de inspiração da própria civilização japonesa que foi algo que depois sucedeu nos Séculos XIX e XX, «quando o Japão tem a articulação com todo o mundo ocidental e que hoje faz com que o Japão seja, efectivamente, uma civilização que tem a sua identidade própria, mas que tem um enraizamento na civilização chinesa; é a civilização asiática com maior ligação à civilização ocidental, quer neo-europeia da América, quer, por exemplo, na dimensão portuguesa». Assim, Duarte de Sande acaba por ser o primeiro teorizador das relações da Europa-China/Japão, graças ao registo que nos faz das impressões de três jovens embaixadores japoneses, membros da nobreza local.
Toda a estratégia dessa viagem, verdadeira embaixada cultural, foi montada pela Companhia de Jesus, pois, na perspectiva de Alexandre Valignano, o responsável pela missão jesuíta na Ásia Oriental, havia que incentivar o máximo possível as relações entre o Papado e a China e o Japão.
Mas, afinal, quem é que nos fala neste livro? De que nos fala este livro? Responde o professor Barreto: «Em boa verdade, nós não temos aqui a voz dos japoneses. Nós temos a voz do Duarte de Sande, a voz da Companhia, a voz da Europa. É uma espécie da Europa que se apresenta a ela própria, via Japão. E apresenta-se a si mesmo por via de japoneses ao próprio Japão». E, portanto, o que nós temos ali é, evidentemente, «o grande espanto, o grande contentamento», o apreço enorme que os japoneses têm pela viagem, pela sua estadia em terras tão distantes e culturalmente distintas. E é sempre num tom de admiração, laudatório. Ali não há críticas. Há sim, o espanto, o contentamento. Embora exista o diálogo persistente entre as duas figuras, o diálogo entre alguém que quer manter, digamos assim, uma identidade civilizacional essencialmente nipónica, e articulada à dimensão chinesa, mas essencialmente nipónica; e alguém que quer um Japão em irmandade com a dimensão europeia. E o diálogo acaba por mostrar que exactamente aquele que tem, «como diríamos hoje, uma visão mais internacionalista, mais intercultural, é aquele que está correcto, é aquele que está no processo da modernização, diríamos nós hoje, no processo do desenvolvimento». No processo de abrir alternativas ao próprio Japão e à própria civilização japonesa.
O De Missione Legatorum é uma obra muito interessante, em diálogo, sobre diferentes temas, onde aparece, por exemplo, o valor da arquitectura da Europa, o valor do ordenamento político da Europa… Enfim, acaba por ser uma espécie da Europa a apresentar-se ao Japão. Aliás, no prefácio, diz-se que há o projecto de fazer tradução e edição japonesa, o que nunca viria a acontecer.
Como atrás se disse, os embaixadores pertenciam à nobreza japonesa. Eram familiares e próximos das famílias dominantes da ilha de Kyushu que tinham relações comerciais com os portugueses, os denominados “dáimios”. Tal como acontece em Macau, algumas das elites comerciais locais, na articulação com os portugueses (Valignano usa o termo “aparentados”), são familiares de ofício mercantil, mas que depois parte desses filhos, nem sempre os mais velhos, acabam por ser conduzidos para a Companhia (tal como se faz hoje em dia com os monges nas sociedades budistas).
Pergunta-se: Para a missão da China, qual é a importância destes chineses dentro da Companhia e que, não sendo um número esmagador, constituem uma elite extremamente importante, quer em termos práticos quer em termos de tradição. Estas famílias cimentam laços – mercantis, políticos, de interesse, de poder –, acabam por conduzir alguns dos filhos para dentro e junto da Companhia onde têm funções que, regra geral, são funções que não deixam de ter articulação às dimensões económicas, mas que são muito relevantes, por exemplo, no caso dos tradutores intérpretes e toda a dimensão material.
Nas páginas do De Missione Legatorum, a China é-nos mostrada como uma civilização avançada, a outra alternativa à Europa, o que, para a época, devia ser um conceito bastante revolucionário. O fantástico nisto tudo é ser um português a construir este primeiro quadro global, em que a Europa surge como um modelo para a Ásia oriental, mas um modelo equivalente ao modelo chinês.
Joaquim Magalhães de Castro