O encontro com a Grande Imagem
O próximo obstáculo com que se deparou a comitiva de Manrique foi uma alta montanha repleta de rochas em cuja encosta descendente pastava uma manada de búfalos selvagens, animais potencialmente muito perigosos; e ao pôr-do-Sol chegava a dita a um desfiladeiro cortado por um rio caudaloso.
De novo passaram os extenuados caminhantes a noite no cimo de árvores; do fundo da floresta ouvia-se o constante rugir dos tigres e o abafado patear dos elefantes. Com a aurora tentaram alguns a travessia do rio, mas corrente forte e profunda cedo os demoveu. Construiu-se então uma jangada e dez dos homens mais experientes tentaram remá-la para prender numa das margens uma corda que a ligasse à margem oposta. Debalde. Foram arrastados rio abaixo e tiveram que ser puxados de volta. Várias vezes foi repetida a operação, mas sem sucesso. Não havia nada a fazer a não ser esperar que a força da torrente diminuísse.
Expostos à intempérie, desabrigados, impossibilitados de acender uma fogueira e com a comida que carregavam encharcada e intragável, a situação dos viajantes era bastante complicada. Por sorte, um dos soldados arracaneses trazia consigo um pouco de arroz “cozido e seco”, e isso bastou para uma refeição muito leve, para a qual, como realça Sebastião Manrique, “os prisioneiros não foram convidados”. Era tal a penúria, que ao terceiro dia de padecimento o sacerdote abriu o vinho que trouxera para a missa, tendo o conteúdo das duas garrafas desaparecido num ápice…
Na manhã do quarto dia era desesperante a situação. Além da humidade, do frio e da fome, havia ainda o perigo constante dos famintos felinos. Manrique exortou os cristãos presentes à oração, implorando a Deus que não permitisse acabarem eles os seus dias “nas entranhas de animais selvagens”. Depois de ouvir os fiéis em confissão, o frade voltou-se para os prisioneiros, tanto muçulmanos como hindus, e explicou-lhes o que deveriam fazer para não perder “as suas almas e os seus corpos”. Manrique garante-nos que todos começaram a chorar, mas nenhum se converteu.
Naquela noite o céu clareou e as estrelas voltaram a aparecer. Com a ajuda de um pouco de pólvora foi possível acender uma fogueira à volta da qual se colocaram as roupas a secar e onde cada um buscou o melhor nicho para dormir. De manhã era substancialmente menor o caudal do rio e a jangada pode chegar à margem oposta. Foi a uma árvore amarrada uma corda, e com a ajuda desta puderam, um a um, atravessar o obstáculo em segurança. Porém, novo dilúvio se aprontava, precisamente quando atacavam o cume oposto, e de tal modo era íngreme o caminho que Manrique e Tibau foram obrigados a desmontar e “a subir de gatas”. Os elefantes, apesar do seu tamanho, mostravam-se ágeis como cabras, escolhendo cuidadosamente as melhores pedras onde colocar as patorras. Ao cair da noite tinham ultrapassado novo colo, e, após breve descida, dormiram de novo “amarrados aos galhos das árvores”, finda a recitação da “ladainha da Santíssima Virgem”.
A cidade de “Peroem” estava agora a apenas um dia de marcha. Animados com a perpectiva do fim de tão árdua jornada, madrugaram os viandantes prontos a percorrer o trilho que os conduziria, primeiro, a um vale e, daí, a uma outra serra, “acidentada e escarpada como a anterior”. Depararam finalmente com um rio que (foi disso informado Manrique mais tarde) fazia parte de um projecto de um canal que pretendia unir o Arracão à Índia. A julgar pela natureza do terreno, dificilmente seria concretizável algo do género. Recorde-se que já desde o Século XVII se falava de uma ligação terrestre, e o assunto chegara a quase vias de facto – lembra Maurice Collis, na altura funcionário do Raj britânico, “quando eu estava lá em 1924” –, em forma de ligação ferroviária. “Se tivesse sido construído”, nota o escritor, “teria fortalecido muito a posição militar britânica na Birmânia contra a invasão japonesa de 1942”. Nota por sua vez, Manrique, que nesse distante ano de 1629 a proposta fora abandonada pois havia o perigo das forças mogóis inimigas poderem utilizar o projectado canal para levar a cabo uma invasão do Arracão.
No cume da colina a que nos referimos havia um santuário escavado na rocha em cujo interior estava sentada “uma imagem de pedra com as pernas cruzadas”. Ora, essa imagem era a do Buda e na altura não chegara ainda à Europa o conhecimento da religião que ele pregara (embora a prática do Budismo tivesse sido já constatada in locopor alguns missionários, caso do jesuíta António de Andrade, que cinco anos antes fundara uma estação missionária no Tibete); se bem que Manrique usasse a palavra arracanesa para designar Gautama, ele, na realidade, desconhecia as diferenças entre Hinduísmo e Budismo. Para o frade agostinho ambas as religiões se confundiam na designação geral de paganismo.
Encontravam-se os viajantes no limiar de um reino onde se venerava uma colossal e muito antiga estátua de Buda conhecida como Mahamuni, que os autóctones piamente acreditavam ter sido esculpida à imagem e semelhança de Gautama Buda, que teria servido de modelo. A simples posse dessa “Grande Imagem” particularmente sagrada era suficiente para identificar a área do Arracão mais com o Budismo do que com o Hinduísmo.
Joaquim Magalhães de Castro