O poder do hábito religioso
Foram quatro dias de sofrimento e humilhação. Ao quinto, chegaram alguns polícias bem armados e colocaram grilhões nos pés dos prisioneiros, unindo-os depois com uma corrente de ferro. Tinham instruções para conduzi-los a Midnapur (Midnapore), cidade a quatro dias de marcha. Logo à saída da aldeia, um dos agentes de autoridade, aborrecido porque os portugueses, num estado de enorme debilidade, andavam devagar demais para o seu gosto, ergueu o bastão com a intenção de os golpear, proferindo ao mesmo tempo uma pavorosa obscenidade. Repreendeu-o de imediato o seu superior, “provando assim”, escreve Manrique, “que onde muitos homens maus estão reunidos, um homem bom, ou menos mau que o resto, se pode encontrar”. Esse mesmo funcionário daria novas provas de humanidade ao aproximar-se dos prisioneiros para, de um modo gentil, assegurar que nenhum mal lhes aconteceria enquanto estivessem sob o seu comando… Incentivado pela inesperada atitude, Manrique lembrou-lhe que eram mercadores pacíficos, “fazendo os seus negócios de acordo com a lei da terra”, não entendendo por isso os maltratos. Parece ter resultado a sua intervenção! Doravante, jamais os forçariam a marchar para além das suas forças, e na aldeia onde acamparam foi requisitado óleo para ajudar a tratar das suas feridas. Manrique, porém, declinou a oferta. Achava que o óleo poderia fazer mais mal do que bem, além de que era importante, por uma questão de necessidade de prova, aparecer diante dos magistrados no estado em que se encontravam. Ninguém mais foi autorizado a chegar perto deles, ao passarem nas aldeias, e como a marcha era interrompida frequentemente para que pudessem descansar, só ao sexto dia chegaram a Manipur.
Apesar da brandura dos guardas, era deplorável a aparência dos prisioneiros. Naquela cidade espalhara-se o boato da captura de “um grupo de piratas infiéis”, uma acusação que abalaria o ânimo dos prisioneiros não fosse o conforto espiritual de Sebastião Manrique e as frases de Santo Agostinho que ele proferia. No dia seguinte, foram conduzidos os malogrados viajantes ao tribunal onde deparariam com o magistrado sentado num tapete a jogar xadrez com dois oficiais. Depois de ler a acusação, aquele perguntou-lhes o que tinham a dizer em sua defesa, e Trigueiros, “que falava hindustani com grande fluência”, repetiu a história inúmeras vezes explanada, realçando o facto de Manrique ser um missionário da Ordem dos Agostinhos, ameaçando por isso levar o assunto às mais altas autoridades, “inclusive ao próprio imperador”, se preciso fosse.
Recorde-se que Shah Jahan, após o saque de Hugli em 1652, alterara a sua política hostil em relação aos portugueses. Apresentava-se agora como “aliado” deles. As duras palavras de Trigueiros impressionaram o magistrado e este tratou logo de inquirir dos conhecimentos dos portugueses entre a gente daquela cidade, ou seja, “pessoas que pudessem testemunhar a sua identidade e boa fé”. Lamentavelmente não havia ninguém que preenchesse os requisitos. O juiz enviou então um funcionário à cidade em busca de mercadores habituados a negociar em Hugli ou Banja. Em breve estavam na sua presença três mercadores muçulmanos de renome. Um deles aproximou-se de Manrique e, expressando-se no luo idioma, nomeou alguns dos principais portugueses de Hugli, testando assim o conhecimento do frade. Qual não foi o seu espanto ao saber que o vigário de Banja, “que ensinava português ao seu filho”, era não só amigo de Manrique como também irmão da congregação. Sendo assim, bastava que este escrevesse e o outro respondesse, confirmando-o como membro da Ordem. Isso provavelmente bastaria para garantir a absolvição. De imediato, redigiu a carta o nosso herói, aproveitando Trigueiros para fazer o seu apelo também… Até lá – lembrou o magistrado – teriam de esperar na cadeia. Preocupado, o comerciante muçulmano tudo fez para que fossem bem tratados: bastou-lhe subornar o carcereiro, que de imediato lhes retirou as correntes e arranjou camas e um médico para lhes tratar dos ferimentos.
A resposta de Banja chegou passados nove dias. Eram duas cartas: uma do vigário dessa povoação e outra do capitão dos mercadores portugueses ali residentes. Satisfeito com as provas, o juiz concedeu imediatamente a fiança; Manrique e companheiros puderam assim aceitar a hospitalidade do comerciante muçulmano, à espera da absolvição formal. Entretanto, fora condenado a pagar duzentas rupias de indemnização o chefe de aldeia que os aprisionara… Manrique, porém, recusou-se a aceitar o dinheiro, declarando “que tudo fora já perdoado e o episódio chegara ao fim”. Tão nobre atitude impressionou deveras o magistrado da cidade que convidou os portugueses para jantar e, antes da partida para Banja, presenteou-os com valiosos xailes de caxemira. Imagine-se a gratidão dos nossos compatriotas para com aquele homem tão bom, “embora fosse muçulmano”, e de quem se despediram com muita emoção!
Dias depois, entravam em Banja. Manrique tratou de despachar os seus negócios, “conforme o orientado pelo Provincial da Ordem”, tendo seguido depois para Hijli, onde concluiu “a pequena missão política que o vice-rei lhe confiara”. Em Março de 1636, oito anos depois de ter iniciado a sua viagem, o padre Sebastião Manrique chegava finalmente à sede dos agostinhos, em Cochim.
Joaquim Magalhães de Castro