CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 62

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 62

O regresso do frade Manrique

Durante a sua estada em Dianga não ouviremos de Manrique uma única palavra acerca dos níveis de fé dos seus compatriotas; em contrapartida será entre os cristãos nativos, como nos recorda o historiador Jacques Leider, que encontrará “exemplos impressionantes de piedade e ardor espiritual”.

Ao ver uma das cristãs nativas ir às lágrimas só porque não conseguira atrair à igreja de Angaracale as esposas pagãs de alguns portugueses, sentiu-se, mais do que edificado, confuso, “ao considerar o quanto essa boa indiana havia feito para agradar a Deus” e o quão pouco estava ele fazendo. Confessa-se até envergonhado perante “a beleza e a pureza da alma sob aquela pele escura, e como o Amante Divino se deve enamorar dela por tê-la dotado de tanto do Seu espírito”. Esta sincera exposição revela-nos a personalidade do frade agostinho. Se por um lado nos descreve detalhadamente as suas aventuras, por outro expõe com toda a franqueza os seus sentimentos e emoções, não se coibindo de tecer considerações morais quando confrontado com representantes dos poderes temporal e religioso das territórios que visitava.

Não nos parece que fosse sua intenção apresentar um exaustivo relatório das empreitadas, políticas ou eclesiásticas, suas razões de ser ou resultados finais… Tão pouco sabemos se tais tarefas tinham carácter oficial ou se eram meros actos informais; sabemos, isso sim, que a primeira viagem ao Arracão se deveu ao perigo eminente da população portuguesa de Dianga face a possibilidade de uma investida militar arracanesa, tendo Manrique conseguido uma proeza que nenhum dos residentes portugueses em Mrauk U lograra antes: franquear os portões do Palácio Real. Podemos atribuir esse sucesso ao facto de ser padre; como se sabe, os reis orientais daquela época nutriam admiração e respeito por esses homens de conhecimento de longas barbas, encarados quantas das vezes como magos e adivinhos, o que explica as benesses recebidas e a proximidade – sobretudo no caso dos jesuítas e agostinhos – aos anfitriões nas diferentes cortes asiáticas.

Como foi já aqui sugerido, Thiri Thudhamma tinha ulterior motivo justificativo das longas charlas com o agostinho. Sabia-o bem informado e bem posicionado; esperando que ele o ajudasse a convencer as autoridades de Goa a um acordo militar, satisfatório para ambas as partes. Manrique, embora não pareça estar ciente dos motivos por detrás de toda aquela simpatia e tão insistentes questionários – como religioso que era competia-lhe limitar-se aos assuntos da sua Igreja –, era tudo menos ingénuo. Devia ter perfeita consciência daquilo que Sir Thomas Roe, embaixador à corte de Jahangir, em 1615, designara de “o ritmo da corte”. Com certeza tinham chegado até ele rumores, ou até desabafos e confidências, acerca dos obscuros negócios, tramas e intrigas urdidas no segredo dos deuses dos bastidores do palácio, não necessariamente nos aposentos reais, pois de facções ferozmente rivais, alheias a quaisquer tipo de laços, até mesmo os de carácter sanguíneo, se alimentava o poder político naquelas paragens.

Provavelmente não se inteirou Manrique do pavor secreto que assombrava Thiri Thudhamma – o ser afastado do trono! – ou da sua extraordinária ambição de se tornar “Senhor Universal”, o Chakri Rama, à semelhança do seu avô. Tal era a premência de uma aliança com os portugueses que, durante a presença de Manrique em Dianga, encetou o monarca arracanês contacto com o vice-rei Dom Miguel de Noronha, agora que tinha na manga um bom trunfo: mandara os seus navios em socorro dos portugueses de Hugli, sitiados pelas tropas mogóis. Socorro em vão, tarde chegou, devido a um temporal; mas o que importava mesmo era a intenção… Além do mais, tinha acedido o rei ao pedido que presencialmente lhe tinham feito dois dos sobreviventes do saque a Hugli. Os jesuítas João Cabral e Luís Farinha solicitavam autorização para permanecer na ilha de Saugor, na foz do rio Hugli, onde se tinham refugiado. Entretanto, enviara o vice-rei, a pedido do monarca arracanês, o embaixador Gaspar de Mesquita que por sua vez remeteu para Dianga, em Outubro de 1633, uma carta convocando Manrique. Mesquita precisava de ter ao seu lado alguém conhecedor daquela realidade e o agostinho certamente ficou satisfeito por poder voltar ao Arracão. Cinco meses duraram as negociações, até Março de 1634, e tratado não houve algum. Ao aperceber-se que os objectivos de Thiri Thudhamma iam muito além da captura de Daca e da retirada dos mogóis do leste de Bengala, o embaixador refreou-lhe os ânimos: o Estado da Índia não se podia dar ao luxo de pactuar com sonhos tão megalómanos, desafiando o império mogol que assim se tornaria seu inimigo declarado.

Sentiu na pele o profundo desapontamento do rei o pobre do Sebastião ao ver negado o pedido de regresso a Dianga. Argumentava Thiri Thudhamma: se lhe tinha construído uma igreja e fornecido os escravos para tratar dela porquê a vontade de partir? Na verdade, outros motivos explicavam a interdição do rei. Sabia demasiado sobre o Arracão, o nosso aventureiro frade, para se ir assim embora, de ânimo leve; ademais interessava a Thiri Thudhamma mantê-lo perto dos portugueses residentes e cristãos locais, para que permanecessem contentes e sossegados. Esta atitude não deslustra em nada a dos congéneres regionais: nenhum deles gostava que os estrangeiros deixassem os seus domínios uma vez familiarizados com os segredos locais, e tudo faziam para lhes atrasar a partida. Manrique ainda equacionou a fuga como hipótese, mas isso colocaria em risco o futuro da comunidade cristã em prol da qual tanto havia trabalhado. Só lhe restava obedecer, e continuar a visitar assiduamente o palácio, para não criar suspeitas… A atitude do agostinho “convenceu” o rei da sua satisfação em ali permanecer, e este recompensou-o com uma remuneração mensal e abundância de víveres. Manrique não era homem para ficar parado! Mas nem precisou de buscar uma ocupação, pois esta bater-lhe-ia à porta.

Joaquim Magalhães de Castro

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