CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 57

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 57

O comércio dos elefantes

Falemos então de cauris, aqui na sua função lúdica para adultos, e cuja presença no Arracão se explica, como já vimos, pela extensão do comércio desse reino ao sul das Maldivas. Ali o arroz era trocado pelas apetecidas conchas que depois circulavam entre o comum dos mortais enquanto moeda corrente. O trato local estendia-se também ao litoral de Bengala, onde a parceria implicava prata e produtos alimentares arracaneses permutados por salitre, ópio, tecidos, sal e manteiga; e ainda à costa do Coromandel, acrescentando-se neste caso elefantes ao arroz e trazendo no regresso tecidos de boa qualidade, ferro, aço, tabaco, entre outros produtos.

Ao longo de todo o Século XVII, além dos funcionários da Companhia Holandesa das Índias Orientais e dos negociantes privados portugueses, apenas comerciavam em Mrauk U mercantes do litoral leste da Índia. Era de tal forma apetecível este destino que o próprio Thiri Thudhamma, em 1628, desafiando os costumes da Corte, armou navios seus e enviou-os ao Coromandel; década depois fazia o mesmo a rainha Nat Shin May. O negócio centrava-se sobretudo na venda de elefantes recebidos como tributo das tribos serranas, assunto resolvido por agentes da coroa in situou tratantes estrangeiros residentes no Arracão disso encarregados. Era actividade deveras apetecível, “lucros entre 100 e 500 por cento”, como nos lembra o investigador holandês Stephan Egbert Arie van Galen: “cada navio transportava em média catorze animais”.

Para lá dos cumes da cordilheira do Yoma, rubis e demais pedras preciosas da Birmânia pagavam toda a gramínea necessária e ainda sobrava para os tecidos reexportados. A sul, Malaca e o distante Aceh, de forma bem mais esporádica, adquiriam as remessas desse essencial sustento com enxofre, pimenta, chumbo, estanho e louças. Como se constata, a economia arracanesa assentava no cultivo do arroz. E o imposto sobre esse produto, ao contrário dos demais, sujeitos a tributação em espécie, como a cana-de-açúcar e o bambu, tinha função específica. Em tempos de carestia emprestava o rei arroz aos súbditos com a garantia de estes o reembolsarem no ano seguinte. Ou seja: o carbo-hidrato armazenado nos celeiros reais garantia aos contribuintes enganosa segurança, em tempo de fome ou guerra, prolongando eternamente a condição de dependência.

Já Min Bin, com o intuito de incentivar o comércio exterior, instituira uma classe de guardas para protecção dos negociantes estrangeiros, que tinham ao seu dispor exclusivos tanques com água fresca. Nos reinados seguintes, dos filhos Dikha e Saw Hla, ambos empenhados num vasto programa de construção de templos, assiste-se a um hiato na expansão do poderio militar arracanês. Ressurgiriam as forças armadas moldadas por mão portuguesa, mas já no consulado de Min Setya (1564-1571), caracterizado pela ameaça do crescente expansionismo mogol, liderado pelo icónico Acbar, no centro e oeste de Bengala. Ao aperceber-se da incapacidade do exército regular em defender a fronteira ocidental (hoje, território do Bangladesh), Min Setya desafiou os comerciantes portugueses a proteger as linhas fronteiriças, assumindo primeiramente esse papel o assentamento de Dianga na sequência da visita do emissário arracanês, “oferecendo amizade”, em 1569. O momento não podia ser mais oportuno: o governador de Chatigão, Nusrat Khan, causador de problemas a Min Setya, lutará contra os portugueses e por estes será aniquilado. Em suma: uma situação de crise usada vantajosamente pelo monarca budista para cativar os homiziados de Chatigão através de concessões comerciais e de vastos territórios em troca de um eficiente patrulhamento das fronteiras do reino. Ligava-os ao rei arracanês uma espécie de contrato feudal à moda europeia; e como tinham rédea solta, percorriam todo o litoral em busca de escravos que vendiam depois ao seu senhor “cuja riqueza e poder crescente exigiam o controlo de um número cada vez maior de pessoas”, como salienta Arie van Galen.

Há ainda um factor religioso a ter em conta. Ao ajudar o rei budista, os portugueses, senão todos, pelos menos a maioria, vestiam a túnica do cruzado na milenar luta contra o infiel muçulmano (o mogol), afinal, uma das razões que levara os portugueses a abandonar o colo da Europa.

No seu relatório, Emil Forchhammer diz-nos não ter encontrado vestígios arqueológicos significativos entre Sandoway e Kwa, e após um “cuidadoso exame” a Ngapali, Go e Myochaung, “ao sul e sudeste de Sandoway”, e junto ao litoral, em busca de vestígios de assentamentos, “pois essas partes da costa e ilhas adjacentes eram frequentemente ocupadas por piratas e aventureiros portugueses de Goa”, nada encontrou. Segundo lhe asseguravam alguns populares em Myochaung (por mais que tente, não consigo identificar esta povoação) existiriam restos de “uma cidade antiga e de uma fortificação nas margens do riacho” cujo caudal Emil e companhia seguiriam até à nascente, sem deparar, contudo, com qualquer traço de presença humana anterior. Enfim, a apressada conclusão do helvético contradiz a existência das aldeias Kemo (já aqui mencionada) e Kin Zay Tee (pelos menos assim se chama o pagode local), perto de Thandwe, ambas utilizadas pelos portugueses, segundo me garantiu U Thein Win, amigo da senhora Susu, proprietária do restaurante Ocean Pearl.

No final do seu relatório, Emil fornece uma lista com os nomes de 198 cidades antigas e modernas distribuídas ao longo das margens do rio Kaladan. Três desses nomes são susceptíveis de levantar alguma lebre. O primeiro, “Paring”, povoação a leste de Mrauk U, remete para o termo “ferengi”; ao segundo, “Patako”, basta mudar uma consoante para virar “pataco”; e o terceiro, “Santakala”, com muita imaginação poderá esconder-se ali uma “Santa” ou até uma “Santa Clara”. Mas isso seria pedir demais.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *