CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 54

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 54

A marinha, jurisprudência e umas estranhas gravuras

Talvez aquilo que de mais útil aportaram os portugueses a Min Bin foi uma marinha arracanesa totalmente remodelada e modernizada, “guiada e reforçada” por armadores portugueses, pilotos e até capitães, muito embora as tripulações dos navios serem, como é óbvio, maioritariamente arracaneses. Em termos estruturais, é inegável a influência lusa na arqueação, no casco e formato geral das embarcações da actualidade, sobretudo a popa, resultado dessas inovações do Século XVI.

Em pouco tempo, a renovada frota arracanesa chegaria aos duzentos navios, e na primeira década do Século XVII, como salientava o viajante inglês William Finch, o rei de Arracão tinha ao seu serviço “um número infinito de pequenas barcas”. Dizia Maurice Collis que Min Bin passou a dispor de “uma nova e poderosa arma moderna”, mas como era tudo menos ingénuo cedo se percebeu que se ficasse demasiado dependente dos portugueses dar-lhes-ia a oportunidade de vir um dia a alcançar o estatuto de “fazedores de reis” no Arracão. Para garantir que tal não acontecesse, o comando da frota esteve sempre nas mãos de almirantes arracaneses e, fosse no mar ou em terra, a presença de portugueses era mitigada pela prestação de mercenários de outras nacionalidades, sobretudo japoneses, afegãos e birmaneses.

Certamente como medida preventiva durante este longo período de intenso predomínio português, a jurisprudência local desenvolver-se-ia enormemente graças a Maha Pyinnya-gyaw, conselheiro-mor real que liderara as forças locais contra a primeira ofensiva dos alevantados do golfo de Bengala no Arracão. Maha Pyinnya-gyaw, mais tarde conhecido como “senhor de Chatigão”, acrescentou aos precedentes legais existentes um suporte budista, medida de extrema importância que se perpetuaria no tempo, não apenas no Arracão como também em toda a Birmânia. Esse importante passo demonstra que os arracaneses, em vez de se limitarem a adaptar-se às novéis influências culturais externas, iam mantendo e aperfeiçoando de forma consciente os aspectos da sua cultura tradicional que achavam importantes manter.

Nestas coisas de contactos com gente conhecedora das artes da navegação marítima tinham já os arracaneses vasta experiência. Emil Forchhammer menciona a existência de intrigantes desenhos gravados em oito penedos nas imediações da aldeia de Pataw, um par de quilómetros a norte de Minbya. No primeiro rochedo vemos representado um navio altamente estilizado navegando em direcção a uma montanha; no segundo, duas figuras humanas esticam o braço direito em direcção um ao outro pressionando polegar contra polegar, mindinho contra mindinho, numa atitude de entendimento e hospitalidade. Na terceira, altera-se radicalmente o panorama: vê-se o forasteiro com o joelho sobre o peito do nativo enquanto, de ar ameaçador, brande uma espada; na quarta rocha o estrangeiro exibe a cabeça decepada do nativo e parece dançar com exultação. A imagem de quinta fraga, de difícil decifração, parece mostrar o estranho confortavelmente instalado no local que tomou posse depois de ter expulso o autóctone, que surge deitado aos pés do que aparenta ser um elefante. No sexto pedregulho voltamos a ver a embarcação, desta feita junto a um rio, o que na interpretação de Emil Forchhammer pressupõe um qualquer tipo de naufrágio. A figura no sétimo penedo é claramente a de um indígena derrotado, em pé, defronte a uma árvore como quem presta um juramento. “Ainda hoje”, escreve Forchhammer, “os birmaneses fazem este tipo de promessas em frente a certas árvores”. O tronco exibe dois olhos e as três linhas no plano superior parecem indicar, no entender do investigador, “o número de tribos afins que entraram num pacto solene para atacar e expulsar o intruso, cuja principal força residia no navio do qual estava agora privado”. A oitava penha mostra-nos o invasor a encetar uma fuga humilhante para Sul. Na mão direita segura uma bengala e na esquerda um pequeno saco. Está praticamente nu: apenas uma tira de pano protege-lhe as partes baixas; o cabelo, em rabo de cavalo, cai sobre as costas e os ombros; no seu encalço voam flechas e pedras atiradas pelos nativos que assim recuperam os seus domínios. Emil Forchhammer salienta o facto dos contornos desta última figura terem meia polegada de profundidade, na superfície da rocha. Nada se sabe acerca da autoria e data de produção destas esculturas, tão pouco há “uma lenda qualquer a seu respeito” que nos possa elucidar sobre tão fascinante matéria… Se bem que os episódios retratados aparentem ter provecta idade, não será de descartar totalmente a possibilidade, se bem que remota, de estarmos perante uma representação primitiva de uma incursão de piratas portugueses.

Resta acrescentar que no pagode de Minbya, onde existe um pagode que guarda a pelugem facial do Gautama, as bases leste e oeste da colina estão alinhadas com grandes tanques; e também ali há vestígios de paredes, pagodes e outras estruturas de tijolo e pedra.


A capacidade dos monarcas de forjar alianças com os chatins portugueses que viviam na Baía de Bengala foi crucial para o sucesso do seu reino. A reversão da política arracanesa no que se refere à comunidade portuguesa a partir de 1638 foi inversamente responsável pelo declínio do reino de Mrauk U.

Joaquim Magalhães de Castro

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