CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 53

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 53

O poder dos guardas protectores

Apesar dos diversos inquéritos, reais e virtuais, estes com prolongada consulta cibernética, nenhuma informação encontro a respeito do mencionado “forte”. Mas deixarei aqui ficar, em jeito de compensação, uma das “descobertas” que me deixou deveras intrigado.

Num anónimo pagode nas imediações do templo Sakya Man Aung, um dos mais venerados de Mrauk U, deparo com duas enigmáticas figuras em alto-relevo postadas à entrada, uma de cada lado, do pequeno túnel que dá acesso ao santuário central de blocos de arenito onde, como é habitual, se senta em toda a sua quietação o Iluminado. Estão ambas descalças e o barrete, as longas barbas e as bem talhadas túnicas remetem-nos de imediato para um qualquer fariseu, sumo-sacerdote bíblico ou até, recuando bastante mais o cronos, personagem sumério, assírio ou de qualquer outra estirpe da Antiga Mesopotâmia; de uma forma ou doutra alguém de estrato social elevado, magistrado, monarca quiçá, estatuto que a riqueza das vestes denuncia. Que guardam (ou bendizem) a entrada do santuário, parece não haver grande dúvida, agora a questão é: quem pretendia representar o artista quando esculpiu estas peças na rocha? Olhemo-los de novo, agora com redobrada atenção:

Pendem-lhes do pescoço um colar de enormes contas que, juntado aos pés nus, lhes confere ar de eremitas ou penitentes, embora a enorme fivela do cinto em forma de laço lhes dê um ar marcial. Numa das mãos seguram um bordão e na outra uma esfera. Ou será que o bordão é uma espingarda e a bola um pelouro? Ambas são possibilidades. No geral, o seu aspecto não é, de todo, oriental. Nega-o o tamanho e volume das barbas, mas também o desenho do nariz aquilino e a concavidade na zona ocular.

Lembram-se da já bem identificada escultura do “português” em pose de devoção e com uma flor de lótus numa das mãos à entrada de um dos incontáveis nichos com Buda no interior do templo de Dukkanthein? Pois bem, se o compararmos com estes “guardiões” de imediato surgem semelhanças quanto ao formato do gorro, tamanho e espessura da barba e à curvatura aquilínea do naso, o que não é coisa pouca. Arriscaria dizer que podemos estar perante a representação de dois mercenários, presumivelmente portugueses. Encaravam-nos os monarcas arracaneses como utilitária ferramenta: garantiam o controlo do que fora conquistado no exterior e ao mesmo tempo a segurança da coroa, face às ameaças internas e regionais.

Além das medidas defensivas gerais, havia-as específicas para a protecção de civis e, sobretudo, monges. Os pagodes de Dukkanthein, Lemyekhna, Andaw e Shitthaung, todos eles a pelo menos dez metros acima do nível médio da cidade, portanto, fora de perigo de inundação artificial provocado pela abertura das comportas dos reservatórios, foram construídos – sabe-se hoje – para servir de “último refúgio dos eclesiásticos”. Tal é a espessura das paredes de Dukkanthein, por exemplo, que nem os tiros de canhão seriam capazes de desalojar os monges ali refugiados. Por sua vez, e especificamente, o Shitthaung fora projectado como reduto da família real e dos seus guarda-costas. Além das paredes “com quinze pés de espessura” (mediu-as Emil Forchhammer), o tecto seria reforçado com camadas de tijolos suplementares, tendo precisamente em conta o temido poder de fogo dos canhões portugueses. Quando os artilheiros que os operavam alinhavam do lado arracanês eram instalados em pontos estratégicos, sobretudo junto aos portões e no topo da muralha da cidade, como o bem demonstram as pinturas naives dos tectos do átrio principal de Shitthaung.

Min Bin contou com o contributo de oficiais e instrutores militares portugueses para desenvolver e aprimorar o seu exército, e embora tivesse ao seu serviço outros mercenários estrangeiros, e até locais, cabia aos lusos a honrosa função de guardar o palácio, não propriamente devido à sua habilidade militar mas sobretudo ao prestígio alcançado naquelas partes. Ter portugueses ao serviço davastatus. Se os reis de Ava, do Pegu, do Sião e outros tinham contingentes de portugueses nos seus exércitos e guarda palacial, porque não haveriam os reis arracaneses de os ter também? Tendo em conta o que atrás fica dito, não me parece de todo descabida a possibilidade de dois estrangeiros em estátua simbolicamente protegerem um local sagrado, até porque a presença de homens estrangeiros armados nas paredes e tectos dos templos não é coisa incomum na antiga Birmânia.

Rodemos entretanto a perspectiva, arredando a perspectiva militar. Será que os “guardiões” representam estrangeiros convertidos ao Budismo ou trata-se de homens religiosos estrangeiros, monges-soldados, devidamente aculturados, já que adoptaram a vestimenta local e cumprem a regra sagrada de entrar descalço nos locais de culto? Recorde-se que a data da construção do pagode Sakya Man Aung, 1629, coincide com a chegada a Mrauk U do agostinho Sebastião Manrique, reinava então, como se sabe, Thiri Thudamma. Se bem que o conhecido frade tenha sido recebido com honras de alto dignitário pois estava ali como emissário de um rei (vice-rei, no caso) com quem Arracão se queria aliar militarmente, é bastante improvável que surgisse representado, porém, não podemos descartar essa hipótese. Se em 1536 Min Bin mandara instalar em Shitthaung e noutros templos numerosas cópias da “imagem de Candasara” (Buda) como talismã protector, porque não haveria de fazer algo de similar Thiri Thudamma, recorrendo, desta feita, a um missionário português, figura altamente prestigiada a quem não raras vezes atribuíam poderes mágicos?

Joaquim Magalhães de Castro

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