A “biblioteca” e os 90 mil budas
Ao fundo do vale e nas imediações de meia dúzia de outros pagodes, digno de registo nestas linhas também, um pequeno templo, ou melhor dizendo, repositório das sagradas escrituras, o dito Krun-kite Pitakataik, longo vocábulo arracanês que designa “biblioteca”. Construído em 1591 por ordem de Min Phalaung, o Pitakataik foi oferecido aos monges do mosteiro de Taungnyo, sendo apenas um, seguramente o mais artístico em termos arquitectónicos, dos 48 pitaks existentes em Mrauk U. Pena é que não possamos apreciar devidamente esta obra de arte em forma de flor de lótus. O seu exterior, originalmente coberto com lamelas de ouro, está degradado e teve entretanto um tecto de zinco (em jeito de tazang) literalmente colado ao topo da ruína, o que lhe retira toda a visibilidade. Duvido da eficácia protectora de tão absurdo abrigo. Afinal, estamos perante um amontoado de pedras às quais a chuva, por mais torrencial que seja, não fará grande mossa. Mossa fizeram já, e o suficiente, as raízes das árvores e os tremores de terra, como o compravam as rachadelas. Tudo indica que não o terá encontrado em melhor estado Emil Forchhammer, pois segundo o seu relatório apenas a parede norte estava intacta tendo tombado os outros três lados e o telhado, este último, e a julgar pelas pedras espalhadas em redor, “deve ter sido originalmente uma cúpula hemisférica”. No cubículo interior com menos de um metro quadrado, agora vazio, eram arrecadadas as escrituras, isto é, os códigos de conduta para monges e leigos relativos “[às] suas vidas presentes e futuras”. Duas fotos antigas no painel informativo ajudam-nos a compreender como tudo isto era antes. Estranhamente, apresenta o monumento com um óptimo aspecto, embora os fotogramas sejam posteriores à época em que por ali andou Forchhammer. Terá sido o Pitakataik entretanto restaurado e de novo danificado, por motivos de força maior? Mistérios. Atentemos à seguinte frase: “(…) a parede externa é decorada com desenhos florais e geométricos, com folhas e videiras esculpidas em detalhe (…)”. Querem melhor comprovativo da influência portuguesa nestas construções? Não esqueçamos de quem aqui introduziu a vinha… Recordam o episódio relatado por Fernão Mendes Pinto de que aqui falamos há umas crónicas atrás?
Deparo com o mesmo tipo de ornamentação – florões e videiras – nas múltiplas entradas do bonito pagode de Laung Ban Pyauk, neste caso, ao contrário dos vizinhos, desprovido das paredes em socalcos típicas dos templos do Sul da Índia, mas com aquela cabeça de naja estilizada que encumeia todas as entradas dos pagodes. Nos muros divisórios dos pátios que antecedem a estupa restam ainda bem preservados ladrilhos em forma de pétalas vitrificados a vermelho, verde, azul e amarelo.
E deste vale me despeço para rumar a uma planície farta de terrenos agrícolas a poucos quilómetros a leste do Palácio Real. Aí se encontra, para que o quadro fique completo, o peso pesado Koe Thaung, mandado construir em 1553 por Min Dikkha. Para assegurar que nunca lhe fizesse sombra a obra encomendada pelo pai Min Bin, o Shitthaung (“templo dos 80 mil budas”), acrescentaria à sua dez mil esculturas mais, daí o nome Koe Thaung, “templo dos 90 mil budas”. Mesmo inacabado, pode gabar-se este maciço complexo, graças aos seus 76 metros de comprimento por 70 de largura, de ser o maior de Mrauk U. Grossas paredes e terraços de pedra dão-lhe aquele aspecto marcial que nos tem vindo a habituar o património local… Avistado do lado sul, o alinhamento de fileiras sucessivas de pequenas estupas em forma de sino evoca vagamente o gigante Borobudur, símbolo maior do legado hindu na distante ilha de Java. E, quando muito, uma ténue imitação sua, e em ponto pequeno. Como é habitual, a entrada primária do complexo está voltada para leste e a ela dão acesso quatro lanços de escadas. E também aqui os encontro, uma vez mais, o típico portal de fortaleza em ogiva e os longos corredores com sucessivos arcos, também ogivais, que nos recordam o carácter defensivo destes complexos monástico-castrenses. Desprovido do telhado de terracota de outrora, mais acastelados me parecem estes corredores internos decorados com milhares de pequeníssimos budas em baixo-relevo (contrariando a predominância de altos-relevos) e, em intervalos regulares, respeitáveis maitrias (budas do futuro) sentados em nichos, virados uns para os outros, quais sentinelas; e isto até que, percorrido o interior em espiral – cinco estreitos terraços ao todo – se atinge o santuário central, a partir do qual se ergue a estupa-mor, circular e também ela em forma de sino. Reza a lenda que o Koe Thaung foi em tempos atingido por um raio destruidor, logo encarado como castigo divino pela soberba de Min Dikkha. Como ousara ele superar o progenitor na sua tentativa de obter mérito?
A óbvia qualidade inferior dos materiais de construção – menos blocos de arenito e mais tijolos –, em comparação com outros templos de Mrauk U, deve-se certamente à falta de meios financeiros. Durante o reinado de Min Dikkha (1553-1555) Arracão perderia temporariamente o controlo sobre Chatigão (porto retomado de forma definitiva por Min Razagyi), e com ele a renda anual e a mão-de-obra escrava, afectando de sobremaneira o ambicioso programa de construção iniciado por Min Bin.
Após séculos de abandono, os trabalhos arqueológicos iniciados em 1996 revelariam muitos objectos curiosos, tais como as lâmpadas de óleo de pedra usadas para iluminar o escuro interior do templo, mas também o resultado das incursões birmanesas e inglesas. São bem visíveis as cabeças coladas dos budas, uma delas repousando no regaço. E se temos passagens que ainda estão intactas, outras entraram em colapso e mostram grandes rachaduras nas paredes de pedra, daí a relevância dos devidos avisos de alerta destinados aos visitantes.
Joaquim Magalhães de Castro