CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 49

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 49

As imprecisões e omissões do suíço

Após o relato da minha experiência pessoal, atentemos agora a opinião dos especialistas. Ou melhor dizendo, a opinião do especialista Emil Forchhammer, nado e criado na Suíça (Março, 1851) mas de ascendência alemã. Dedicado estudioso das línguas ameríndias do Norte e do Centro do continente, tendo convivido “in situ” com os seus falantes, mas também das línguas orientais, nomeadamente o Páli e o Sânscrito, conhecimento este obtido em Leipzig, Emil aprenderia ainda o Arménio num convento perto de Veneza e não passou muito tempo até que as suas publicações científicas o tornassem famoso. Em 1877, o suíço pretere uma oferta de D. Pedro II, Imperador do Brasil – que o convidava a estudar os idiomas das tribos nativas locais –, em favor de um lugar como leitor de Páli na Universidade de Rangum, proposta do Raj britânico.

Aproveitando a estada asiática, Emil trata de instruir-se nas diversas línguas do subcontinente indiano, compara vocabulários, colecciona valiosos manuscritos. Forchhammer é nomeado inspector arqueológico da Birmânia britânica em 1882, e é nessa condição que irá investigar a fundo, entre outras, as ruínas de Bagan (Pagan) e de Mrauk U, medindo palmo a palmo cada pedra, cada tijolo, a distância de uma parede à outra, a espessura das muralhas, as alturas e as circunferências das estupas, os pormenores mais ínfimos das estátuas e dos altos relevos e, sobretudo, atestar o estado de conservação do património observado. Podemos dizer que herrForchhammer foi um dos pioneiros da investigação budista na Birmânia.

Quanto à província do Arracão, não havia dúvidas: os mais importantes vestígios arqueológicos guardava-os Mrauk U. Não obstante, e apesar dos templos aí erguidos por Min Bin e Min Phalaung serem em si mesmo testemunhos duradouros das conquistas em Bengala, ou seja, do período áureo dos arracaneses, os nativos evitavam-nos, ou melhor dizendo, mantinham “mais uma admiração supersticiosa do que reverência religiosa”. E como raramente se oficiava neles o culto, os santuários foram-se progressivamente degradando. Como lembra Emil, “embora estejam sempre prontos” para acrescentar camadas de gesso, caiar ou dourar pagodes como os de Urittaung ou Sandoway, “sem qualquer valor arquitectónico”, os habitantes daquela região eram incapazes de levantar um dedo para impedir a destruição arbitrária, por parte de gananciosos caçadores de tesouros, de templos “que demonstram o poder, os recursos e a cultura dos seus ex-governantes”.

O linguista tornado arqueólogo destaca ainda a singularidade arquitectónica dos pagodes Shitthaung e Dukkanthein, “únicos na Índia”, considerando-as “sem dúvida, as melhores ruínas da Baixa Birmânia”. Lembra-nos, porém, que não foram construídos pelos arracaneses, mas sim pelos kulas da Índia, “forçados a cozer os tijolos e a trazer os blocos de arenito de pedreiras distantes”, atribuindo depois a sua concepção a “arquitectos e escultores hindus”, uma conclusão que denota desconhecimento ou tentativa de ocultar os óbvios elementos europeus presentes nos interiores e exteriores desses templos – o gótico e o românico, então, são por demais evidentes – e que, na óptica de Emil – e neste particular estou inteiramente de acordo com ele – teriam sido utilizados como local de refúgio para a classe religiosa em tempos de guerra.

No entender do investigador helvético, Shitthaung “é mais fortaleza do que pagode”. Daí ter sido construído num promontório a meio caminho do lado oeste da colina. Assim, a parte do edifício voltada para o vale, ou seja, o Oeste, assenta sobre maciças paredes de pedra. Lateralmente, o santuário é protegido por muros que se ramificam e se conectam à base comum de toda a estrutura, a colina, justificando o nosso Emil tal sistema defensivo, fora do padrão habitual – era pelo Norte e pelo Leste, jamais pelo Poente, que entravam os invasores, originários das regiões montanhosas –, pelo facto dos “canhões holandeses e portugueses se fazerem já ouvir e sentir na capital da dinastia Mrauk-U”, pondo em prática a palavra de ordem “ricos e fracos e, portanto, desejáveis”, proferida pelo “vice-rei de Goa”. Canhões holandeses?! Vice-rei de Goa?! Como assim?! Se em 1535-1536, altura da construção do Shitthaung, os holandeses não só estavam ainda a sessenta anos de se aventurarem para além das cinzentas costas do Mar do Norte, como nem eram sequer membros de uma nação independente, tão-só súbditos de Carlos V, rei de Espanha, imperador do Sacro Império Romano e auto-proclamado “o novo Carlos Magno”. Quanto a um pretenso vice-reinado de Goa, quando Goa não tinha rei nem nunca teve, a descabida categorização fala por si. Face a estas incorreções históricas de palmatória não admira a ausência de uma referência que seja, da parte de Emil Forchhammer, aos evidentes traços europeus no desenho daquelas estruturas monástico-castrenses.

Embora de uma precisão germânica em toda a linha no minucioso relatório que fez chegar às mãos das autoridades que o contrataram, peca Emil alarvemente ao não complementar a investigação no terreno com a imprescindível e obrigatória contextualização histórica.

Joaquim Magalhães de Castro

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