O “português” de Dukhanthein
Apesar de conter bem menos estatuária que o congénere Shitthaung, seu directo concorrente, é bem maior a visibilidade nos corredores-túneis do Dukhanthein (Htukkant Thein), cujo piso era inteiramente coberto com lajes vitrificadas das quais restam apenas alguns vestígios. Também nestas passagens abobadadas de aparência medieval que no meu imaginário evocam as masmorras descritas nas páginas do “Conde de Monte Cristo” – túneis culminam em becos sem saída; paredes construídas para barrar a passagem –, enfiados nos respectivos nichos, cá os vejo, os habituais budas dourados, intervalados de quando em vez com avatares seus de torso amarelo e saiote púrpura. Gravadas em alto-relevo nas pedras que sustentam os nichos resguardadores das divinas entidades vêem-se várias estatuetas de homens e mulheres da nobreza local empunhando flores de lótus. Também as há de bailarinas a agitar pandeiretas, de uma mãe com a criança ao colo e que lhe toca no seio esquerdo, de dois apaixonados num demorado beijo, e ainda as dos nada simpáticos ogres e indefinidos demónios de aspecto ameaçador. Graças a estas peças de arte – neste caso, sem um único traço da pintura original – apercebemo-nos da indumentária da época: os tipos de turbantes, faixas de cintura, meias e calçado, os diferentes estilos de penteados, os anéis, os colares, as braceletes…
Na verdade, de todas essas esculturas só uma verdadeiramente me interessa. Aquela que representa a figura de um português, na típica postura de deferência face a um rei budista: perna esquerda bastante flectida e a direita inteiramente ajoelhada. Distinguem-se bem o barrete, a barba e o proeminente nariz, indícios que levaram os especialistas a concluir estarem perante a representação de um estrangeiro. Dadas as circunstâncias e a época em que o templo foi erguido, tal forasteiro só poderia ser um dos nossos antepassados. O facto de se apresentar junto a elementos da nobreza local diz muito do papel que desempenhávamos na sociedade de então. Usufruíamos do estatuto de aliados e até de homens de confiança de Min Phalaung. Não me admiraria nada que a escultura deste “português” pretendesse corporizar personagens como Filipe de Brito, Manuel de Mattos, Estêvão Palmeiro ou outro qualquer influente membro da lusa comunidade residente em Arracão e que os livros de História não registaram. Curiosamente, o nome Min Phalaung, que em arracanês significa “príncipe português”, ou “rei português”, consubstancia essa forte relação de proximidade. Há uma explicação plausível para a escolha do inusitado título:
Min Phalaung nasceu logo após a vitória alcançada pelo pai, Min Bin, sobre os portugueses, em 1534, daí aquele ter atribuído ao filho, em jeito de poderoso talismã, o designativo de tão temido e respeitado opositor cuja reputação ultrapassava fronteiras. Outra das hipótese é o nome ter sido escolhido devido à cada vez mais crescente importância dos mercenários portugueses no seio do exército arracanês. De uma forma ou de outra, seria o prestígio luso o factor determinante; e parece ter resultado em pleno o amuleto onomástico escolhido por Min Bin: tinha o príncipe doze anos apenas quando lhe foi confiado o comando de um batalhão do exército destinado a combater as forças invasores de Toungoo, campanha desenrolada com sucesso entre 1546 e 1547. Assim, ajudaria Min Phalaung o pai a consolidar aquele reino costeiro como incontestável potência regional.
De regresso ao exterior do Dukhanthein, perscruto o terreiro coberto de erva seca – tardarão ainda uns bons meses as sempre esperadas chuvas de monção – e deparo com a sala de ordenação adjacente ao templo, aqui conhecida como “Sabbath Chamber”. Sinceramente, não consigo entender o porquê de tal designação! O único sabbath que conheço está ligado à religião judaica, e de Judaísmo por aqui não há qualquer vestígio. Tem o referido edifício o nosso já conhecido formato-de-hangar, várias janelas laterais e uma janela circular na fachada principal, e não lhe encontrei qualquer porta. Daqui avista-se, a uns cinquenta metros, se tanto, um outro conjunto de estupas antecedidos de uma estrutura rectangular de blocos de arenito. Trata-se do Le Myet Hna, construído entre 1531 e 1534 por Min Bin, alegadamente no local onde haveria já um pagode que remonta a 1430, reinado de Min Saw Mon, fundador da dinastia Mrauk U. O interior de planta octogonal conta com um grande pilar e oito budas sentados ao seu redor, tendo o zimbório, o hati, o habitual formato oval, mais exactamente a forma de um cogumelo. Terei oportunidade de apreciar todo o conjunto, mais tarde, do cima de uma colina muito popular entre os visitantes. Dali assistem religiosamente ao pôr-do-sol na expectativa de registar uma daquelas fotos de catálogo, esquecendo-se que as mesmas são fruto de sucessivas tentativas e tentativas-erro; e, já agora, acrescidas de uns toquezinhos de “Photoshop”. É bem perceptível, a partir lá do alto, o formato quadrangular da estrutura central. Se lhe retirarmos os pagodes em forma de sino estaremos, sem tirar nem pôr, perante uma fortaleza semelhante às muitas que os portugueses ergueram ao longo de toda costa africana, no Brasil – das praias atlânticas às florestas da Amazónia, sendo o Forte do Príncipe da Beira exemplo paradigmático – e em tantíssimos portos do Índico.
Joaquim Magalhães de Castro