A origem da “má fama” dos portugueses
Saio por onde deveria ter entrado, pois é a Oeste e não a Leste de Shitthaung que está a habitual placa de mármore identificativa do pagode e qual o reinado em que foi construído, além dos bem mais recentes painéis com dados informativos, respectiva planta, uma foto aérea e várias outras, mais antigas e bem demonstrativas do amontoado de ruínas que era tudo isto antes dos demorados trabalhos de reabilitação e reconstituição que providencial balão de oxigénio financeiro reforçaria na década de 90 do século passado. E lá está, a menção ao construtor do “templo da vitória” e aos “portuguese marauders”, os maus da fita, no caso particular. A este respeito façamos um parênteses para perceber de onde vem esta má fama. Teremos de recuar, pois, à primeira embaixada oficial portuguesa, a de Dom João Silveira, lembram-se?
Ao aperceberem-se de que os europeus poderiam ajudá-los a recuperar o seu antigo poderio na baía de Bengala, apressaram-se os arracaneses a enviar-lhes um emissário com um anel de rubi como presente. Era um claro sinal de boa vontade e uma porta aberta de acesso a esse reino ainda desconhecido. Contudo, a iniciativa não teve os resultados esperados. Como salienta o historiador Michael W. Charney, na sua tese apresentada na Universidade de Ohio, em 1993, “Silveira teve dificuldades em entender o porquê de toda aquela cortesia pois pouco antes fora hostilizado pelo vizir de Bengala, em Chatigão”. Temendo algum tipo de traição – suspeita essa agravada pela insistência do emissário arracanês que tudo fazia para cativar os estrangeiros – Silveira acabaria por deixar transparecer a sua preocupação ao Governo português e doravante aos arracaneses, apesar da genuína predisposição e abertura, ser-lhes-ia aplicado o sinete “gente traiçoeira e desonesta”. Devido a esse mal-entendido, de potencial valioso aliado passa Arracão a ser encarado como inimigo e consequentemente, durante o restante reinado de Min Raza e nos dos seus três sucessores Gazapati, Min Saw e Thazata, o litoral arracanês estará sujeito a ataques periódicos de navios portugueses, muitas das vezes ordenados por Goa como retaliação por alegadas acometidas de “piratas arracaneses” a navios indianos. Mas essas incursões baseavam-se em informações erradas, uma vez que os tais “piratas” eram frequentemente afegãos, e não arracaneses. Enquanto isso, e para ajudar a criar mais confusão ainda, homiziados portugueses efectuavam surtidas não oficiais – piráticas, portanto – na costa do Arracão, tendo como único objectivo o saque e a captura de escravos.
Senhor de doze grandes cidades, cada uma delas com governador nomeado pelo rei, o Arracão era potestade de razoável grandeza e importância e podia equiparar-se a congéneres suas do Sudeste Asiático e até da Europa. Rodeado de luxo e mordomias, o rei habitava um vistoso palácio de teca com tectos e interiores forrados a ouro que impressionaram os portugueses do início do Século XVI. O escrivão de Cananor e intérprete Duarte Barbosa, cujo “Livro” constitui um dos primeiros exemplos da verdadeira literatura de viagem, atribuía a riqueza do rei não só ao ouro e às pedras preciosas, mas também ao grande número “dos seus homens de armas”, pois estava frequentemente em guerra com os vizinhos “e alguns deles o obedecem contra a vontade deles e lhe prestam homenagem”. Barbosa diz-nos que Min Raza vivia faustosamente e possuía “casas muito boas em todas as cidades em que reside, com muitas piscinas de água, jardins verdes e sombreados e boas árvores”. São bem mais acetosas as crónicas arracanesas coevas, apresentando-o como alguém totalmente desinteressado na governação do País, preferindo as demoradas viagens anuais de caça aos elefantes na região de Sandoway. Consta até que, em 1510, preteriu Mrauk U em favor da antiga capital Wethali…
Seja como for, as mundanas excentricidades na corte dos poderosos também não escaparam ao olhar atento dos visitantes estrangeiros. Duarte Barbosa – que mais tarde participaria na viagem de circum-navegação e ao lado de Magalhães perderia a vida na funesta batalha de Mactan – conta-nos que Min Raza recebia anualmente doze meninas recém-nascidas, “da mais alta classificação e das mais bonitas de todas”, uma por cada cidade. Eram educadas com todo o esmero no palácio até aos doze anos, altura em que as vestiam muito ricamente, “o nome de cada uma escrito em suas roupas”, e as colocavam num terraço ao sol do meio-dia para que transpirassem o mais possível. Tiravam depois as suas vestes húmidas que eram levadas à presença do rei para que as cheirasse. Era assim que o rei escolhia as suas mulheres e amantes, a bem dizer: todas aquelas cujas roupas não cheirassem mal. As restantes, aquelas que não passavam o teste do suor, dava-as, de presente, aos cortesãos mais chegados. Estes hábitos culturais continuariam a pasmar os visitantes do século seguinte, como foi o caso do comerciante inglês William Methwold. Nas impressões que deixou registadas não só se referiu à gentilidade do rei mas também ao facto de, ao contrário dos muçulmanos ou de outros soberanos budistas, não ter qualquer tipo de interditos alimentares, “tocando em todas as carnes e bebidas”, e, mais ainda, ao facto de manter uma relação incestuosa com a própria irmã, justificando-a como prática comum “desde a infância do mundo”, já que “nenhuma religião pode negar que os filhos de Adão se casaram com as filhas de Adão”.
Joaquim Magalhães de Castro