O templo da vitória
Se o auge do poder de Arracão se dá no Governo de Min Razagri, já no final da década de 1530 o avô Min Bin transformara o reino num caso sério de potestade regional, controlando todo o litoral graças a uma poderosa marinha e a um exército que incluía muitos mercenários portugueses. Min Bin tinha argumentos de sobra para se considerar um “cakravartin”, ou seja, um “conquistador do mundo”. E para comemorar tal estatuto, consubstanciado nas vitórias obtidas em Bengala, ordenaria a construção de um enorme complexo religioso que viria a ser o Shitthaung, o templo das “oitenta mil imagens de Buda” ou “templo da Vitória”, onde ele próprio se faria retratar em estátua como um “cakravartin”, recorrendo, veja-se lá, a um símbolo português! Mas já lá iremos.
Eis-me perante a joia da coroa de Mrauk U, cidade património da UNESCO. Confesso que me decepciona a primeira impressão do seu exterior, certamente devido ao aspecto limpinho e liso da estupa-mor em forma de sino e 26 outras, de menor dimensão, que lhe fazem guarda, e ainda o muro que rodeia a parte central do monumento. Há uma explicação para todo este asseptismo: em 2003 descobriu-se que as infiltrações de água estavam a deteriorar a rica estatuária distribuída pelas câmaras interiores. Célere, o departamento arqueológico local não esteve com meias medidas: cobriu com cimento, como quem cobre com açúcar um bolo de chocolate, o exterior de todas essas estupas, descaracterizando-as irremediavelmente.
A desfiguração do seu templo mais querido mereceu o maior repúdio de muitos dos arracaneses, porém, com o correr dos anos, e porque as autoridades vieram logo com a justificação do mal menor, o assunto acabaria por cair no esquecimento. E agora é o que vemos. Olhemo-lo bem! Não, é que nem com os coloridos parassóis a servirem de primeiro plano se salva a foto pretendida… Não há volta a dar, a fealdade do conjunto central de Shitthaung é incontestada evidência. Não sou entendido na matéria, mas estou certo que haveria outra forma de recuperar o icónico templo sem recorrer a medida tão radical. Nada justifica uma intervenção destas, verdadeiro atentado patrimonial, e dou duzentos por cento de razão ao professor Aung de Sittwe, que vê no acto intenções outras, bem mais perversas.
Quais testemunhos de autenticidade autóctone, restam inalteradas algumas estupas de diferentes tamanhos no exterior do segundo muro – esse, e as estupas que contêm, ainda com os tijolos originais onde vislumbro os tais elementos decorativos em espiral, aquilo que às vezes vejo descrito como “arabescos florais”. Bastantes mais rústicos, a denunciar as centúrias, duas ou três dessas desgarradas estupas apresentam-se com blocos compactos de arenito, musgosos, de arestas e tamanhos desiguais, encaixados uns nos outros sem qualquer tipo de liga. Enfim, a obrigatória patina que só o tempo traz e que constitui a alma de qualquer edifício.
Como é meu costume, contorno o Shitthaung para o fotografar sob diferentes ângulos e de novo me deparo, agora posicionado a oeste, com os elementos em espiral na sala de ordenação acoplada ao conjunto de estupas, mais galpão do que hangar, mas com o mesmo frontão ondulado e um engenhoso sistema natural de refrigeração constituído por orifícios losângulares. Mesmo ao lado, três arcadas ogivais, em termos arquitectónicos bem mais próximas do gótico do que do arabesco, assinalam o local de meditação, aquilo que os guias locais designam de Sabbath Chamber. Todo este complexo religioso é protegido por uma base de pedra com os cantos em cunha, muito semelhante ao alicerce de uma fortaleza, com alguns dos algerozes com o curioso formato “boca de crocodilo”. Não tenhamos dúvidas: houve aqui intervenção de engenheiros militares portugueses. E pergunto-me: como é que nunca ninguém da área, em Portugal, fez um trabalho demorado sobre tão rica matéria?
Regressado à entrada oeste do templo, e tendo em conta a relevância do local, surpreende-me ver aqui apenas duas vendedoras ambulantes. Uma delas, em frente a pequenos cestos com maçãs, uvas e tangerinas, mas também alguns inhames e amendoins cozidos; a outra, medindo com uma latinha várias doses de caracóis – pelos vistos, uma especialidade muito apreciada localmente – amontoados em duas bacias de esmalte.
Uma bonita escadaria de lajes irregulares, como aquele típico lustro que só o uso concede aos objectos (vá lá que a não cobriram com ladrilhos), conduz-me ao “tazaung” (assim se designam os templos associados a uma estupa ou zedi), com um telhado de múltiplas camadas que se torna menor à medida que sobe e culmina numa torre, o espaço sagrado per se. O chão é de foleiros mosaicos e as colunas de falso dourado sustentam um tecto misto de pladur danificado e tiras de madeira como as das nossas casas antigas, habitualmente azuis. As deste tecto estão inteiramente preenchidas com ilustrações, quais quadradinhos de banda desenhada, dos diferentes episódios, míticos ou reais, ligados ao historial de Shitthaung, surgindo sempre os monges como figuras centrais, mesmo quando está presente o rei, aqui encarado como mero devoto e jamais como entidade semi-divina. Parece-me ser este um óbvio sinal do poder que sempre detiverem os eclesiásticos nestas paragens.
Joaquim Magalhães de Castro