CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 41

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 41

O testemunho do viajante austríaco

A estranha familiaridade da arquitectura de Mrauk U de que falava na semana passada resulta, no fundo, de pragmáticas manobras seguidas por sucessivos monarcas arracaneses. Ou seja, o recrutamento de aventureiros portugueses, os ditos chatins, como conselheiros e engenheiros militares, funções exercidas a par com as estritamente mercenárias. E o auge dessa interesseira relação surge, curiosamente, numa altura, finais do Século XVI, em que a comunidade portuguesa de Bengala tentava garantir o reconhecimento oficial e a protecção do Estado da Índia, para assim solidificar o seu predomínio na região. Em troca, prometiam aos navios da Coroa atractivas isenções tributárias nos portos de Chatigão e Sundiva. Debalde. A resposta veio negativa.

A um pedido específico de António de Sousa Godinho, por exemplo, Filipe I desculpa-se com “os altos custos envolvidos na manutenção das defesas de tais locais”. Enquanto isso, umas centenas de milhas a sul, o monarca arracanês acolhia de braços abertos os lusos alevantados, tratando-os como seus vassalos, certamente com alguns deveres mas sobretudo com muitos privilégios, como bem lembra o investigador holandês Stephan Egbert Arie van Galen, que se debruçou a fundo sobre esta matéria.

Em Outubro de 1599, Manoel de Mattos, representante da comunidade chatin de Chatigão, navega até Mrauk U com o intuito de prestar homenagem a Min Razagri. Acompanham-no o fidalgo Jérôme de Monteiro e o padre Fonseca, este com cartas de Francisco Fernandes, o superior da missão jesuíta em Bengala. Muito bem recebida, a delegação ouvirá Min Razagri, em Janeiro de 1600, após a institucional demora da praxe, comprometer-se com a oferta de terrenos para a construção de igrejas em Chatigão e em Mrauk U e meios para a sua sustentabilidade, propósito que, neste último caso, só se concretizaria após a viagem de Sebastião Manrique, décadas depois, como já se viu. Esta inusitada disponibilidade da realeza local revela bem o prestígio dos portugueses no final do Século XVI em toda aquela região. Essencialmente, haviam-se tornado latifundiários locais, com propriedades que lhes eram atribuídas pelo rei em áreas fronteiriças, pois a qualquer altura precisaria dos seus serviços como soldados e capitães.

Os diários do nobre austríaco Georg Christoph Fernberger, que visitou Bengala em 1589, ilustram bem as circunstâncias em que os arracaneses consolidariam definitivamente o seu poder em Chatigão, no seguimento de um aceso conflito entre o príncipe arracanês Man Co Lha, filho de Min Razagri, e o governador da cidade. Fernberger conta-nos que este havia tomado um forte “no qual posicionara 800 armas grandes e pequenas”, apressando-se a defendê-lo com “cinco mil homens e cinquenta elefantes contra o cerco posto pelo rei”. Como era prática comum entre os soberanos locais, o governador tentou trazer para as suas hostes o capitão da frota portuguesa, António de Sousa Godinho, prometendo-lhe entregar o forte, caso saísse vitorioso. Godinho não hesitou, e colocou-se com os seus homens ao seu dispor. Descreve Fernberger as escaramuças e batalhas entretanto travadas dando-nos conta da morte de “trezentos indianos e vários portugueses” no dia em que chegou a Chatigão, pois eram imensamente superiores as forças arracanesas entretanto desembarcadas naquele porto em socorro do príncipe que, se somarmos as suas tropas às enviadas pelo pai, tinha à disposição “40.000 homens, dos quais 10.000 eram arcabuzeiros, 370 elefantes armados e 4.000 canhões grandes e pequenos”, contingente para ali transportado por uma frota de quatro mil pequenos barcos.

Para apressar a esperada vitória, Man Co Lha enviou “o seu irmão ao capitão português como emissário, com 200 homens e cinquenta elefantes com bandeiras brancas e alguns presentes, para conquistá-lo para o lado arracanês”. Os portugueses concordaram com a oferta do príncipe, embora exigissem como contrapartida a retirada dos arracaneses da ilha de Sundiva, “cuja receita é suficiente para sustentar todo o exército”, metade das armas “e vinte mil laris”, e uma justa troca de prisioneiros. Vendo o caso mal parado, o governador rebelde veio com nova oferta. Além do forte, colocava-se, “juntamente com a família”, à disposição dos portugueses e concordava até ser baptizado. Tarde demais. Os alevantados haviam já fechado negócio com o príncipe e os seus navios juntavam-se à frota do rei arracanês “e agora lutavam com aqueles contra os quais haviam lutado anteriormente”. Desprovido dos seus mercenários favoritos, o governador rebelde não aguentou o cerco mais de três dias, sendo depois o forte despejado da maior parte de grande parte do material de guerra, elefantes e dinheiro. O governador, esse, teve sorte. Não só Man Co Lha lhe poupou a vida como permitiu que continuasse no comando daquele fortificação. Inteligente jogada, pois doravante aquele, devedor ao príncipe, sabia “que não podia confiar nos portugueses”, sendo pouco provável que tentasse rebelar-se de novo.

Fernberger, de facto, testemunhou a última fase da luta dos arracaneses pelo domínio sobre Chatigão, salientando o importante papel que os portugueses desempenharam na área, complementado assim as fontes anteriores que apenas nos indicavam o nosso envolvimento “na luta pelo estuário de Karnafuli”. Embora Min Phalaung já tivesse em 1581 coroado seu segundo filho, o príncipe Man Co Lha, a verdade é que só após o resolução do conflito de 1589, em favor do Estado de Mrauk U, que podemos dizer, como defende Stephan Egbert Arie van Galen, que os arracaneses passaram a controlar o porto de Chatigão. Comprova-o a primeira moeda emitida por Man Co Lha como governador de Chatigão, datada de 1590.

Joaquim Magalhães de Castro

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