O Pietismo – X
O Pietismo é separatista, ou tem tendências secessionistas, em relação ao Luteranismo? Talvez tenham existido mais oposições ou sentimentos de ruptura da ortodoxia luterana em relação ao Pietismo do que o oposto. Mas também existiu reconhecimento em relação ao Pietismo, também se aprendeu e reconheceu em termos de valor doutrinal e experiência de vida cristã.
À medida que os oponentes ortodoxos do Pietismo compreendiam e reconheciam o renascimento da ideia pietista do sacerdócio universal, apesar de admitirem como benéficos os resultados que daí advinham, não deixavam de considerar os perigos e desvantagens que entendiam inerentes a essa concepção (sacerdócio universal). Um dos pontos negativos que definiram foi a relação do Pietismo com o separatismo. Com efeito, viam no Pietismo uma tendência separatista. Mas essa tendência, se existisse ou o parecesse, era totalmente involuntária da parte dos pietistas. Como já aqui falámos, o ramo pietista dos chamados Irmãos Morávios foi o único a formar uma comunhão separada, a cumprir tal tendência. Porém, mesmo nesse grupo as circunstâncias e o carácter que assumiram mostrariam que não eram produto de um espírito intencionalmente separatista, como não o era o próprio Pietismo. Por outro lado, deve-se reconhecer que o Pietismo estava particularmente aberto à acusação de separatismo, ou seja, estavam preparados, os seus fiéis, para serem acusados de tal.
O próprio facto de os adeptos do movimento não serem propriamente convencionais no seu comportamento e forma de estar dentro do Luteranismo, imediatamente levantou suspeitas nos meios mais ortodoxos. Embora os próprios pietistas negassem que existisse algo como “Pietismo”, como movimento ou até denominação, muitos luteranos não pietistas notavam que os adeptos do “movimento” eram muito unidos entre si e apoiavam-se mutuamente, além de que o sentimento de união com simpatizantes noutras localidades era evidente, bem como uma energia inusitada na busca dos seus objectivos e no exercício de uma influência poderosa.
Em suma, o Pietismo tinha-se tornado numa “facção” já em 1691 e, durante a sua era de ouro em Halle, não deixou de manifestar todos os males do “partidarismo”: a sede de poder, a condenação dos opositores e a facilidade em censurar. Assim, existia, de forma consciente e distinta, uma tendência à separação em relação à Igreja Luterana na vida religiosa e social. O próprio facto das suas medidas terem sido planeadas para suscitar e avivar o interesse religioso dos seus adeptos aumentaria anda mais a suspeita de tendências para o separatismo e mesmo secessão.
ENTRE A ORTODOXIA E A SEPARAÇÃO
Todavia, na realidade, o Pietismo não apenas se tornaria numa facção do Luteranismo, como muitos o acusariam de reais tendências separatistas e de outras formas de ruptura. Para muitos, tornou-se em algo como que um movimento de oposição, pois naturalmente constituía um forte apelo para todos aqueles que estavam insatisfeitos com as condições existentes na Igreja Luterana. No Pietismo, estes inconformados procuravam simpatia e protecção, ao mesmo tempo que pretendiam fazer dos círculos pietistas um instrumento dos seus próprios objectivos de prossecução dos seus anseios espirituais. Todos esses “dissidentes” da ortodoxia luterana foram calorosamente recebidos, o que até acaba por contribuir para a aura “separatista” que muitos consideravam existir no Pietismo.
Mas o Pietismo teve que pôr de lado a sua atitude de excessiva suavidade e acolhimento em relação a muitos fiéis que procuravam o movimento animados de um dúbio carácter, ou seja, muito entusiástico e “profético”, eivados de ideias radicais. Essas tendências tinham-nos feito “sair” da ortodoxia, reconhecendo no Pietismo um porto seguro, o que fazia do “movimento” uma espécie de albergue onde todos tinham lugar, o que seria perigoso. Uma certa atitude ambígua do Pietismo, inicialmente, em relação ao radicalismo e ao separatismo, aumentaria, naturalmente, a desconfiança face ao “movimento” e explica a razão pela qual os seus opositores (os ortodoxos) não foram capazes de assumir honestamente um verdadeiro acordo entre os dois grupos. Além disso, o próprio Pietismo tornar-se-ia num solo fértil para outros movimentos separatistas, devido às suas críticas às condições da Igreja coeva, ao seu sistema de “conventículos” e a uma certa predileção pelo milenarismo, além de um profetismo. Aqui deve-se fazer uma distinção clara entre o Pietismo e a noção de separatismo no Luteranismo. O primeiro tentou realizar os seus projectos de reforma dentro da Igreja Luterana, tomando o dogma existente e reconhecendo a organização como algo fundamental, enquanto o segundo perdera todas as esperanças acerca do futuro da Igreja, que acreditavam que estava a morrer e, logo, por princípio, esses movimentos separatistas posicionavam-se fora da Igreja.
RÍGIDA AUSTERIDADE
A principal característica do Pietismo reside na intensa sinceridade moral e na austeridade absoluta que procura alcançar na vida prática. Na sua origem, era necessária uma atitude enérgica contra aquilo que acusavam de ser uma moralidade era baixa, especialmente na Corte e entre a nobreza, embora nas classes média e camponesa não estivessem muito melhores. Os efeitos da Guerra dos Trinta Anos, que abalou a civilização alemã até aos seus alicerces, eram visíveis na imoralidade, luxo, devassidão e desrespeito pelos direitos dos outros. Mas muitos discutem até que ponto o contexto ético-moral na sociedade alemã era assim tão “mau”, na história do Luteranismo do Século XVIII. No entanto, é verdade que o adultério e a embriaguez eram comuns entre os pastores luteranos antes do surgimento do Pietismo, tendo diminuído, de acordo com narrativas da época, melhorando o nível moral do clero. Conhecem-se exemplos, como os do Estado de Württemberg. O efeito moral do Pietismo sobre a nobreza é igualmente demonstrável, o que demonstra que os esforços do Pietismo, nesse sentido, não foram em vão.
O Pietismo não apenas lutou contra o mundanismo, mas considerou o próprio mundo como um vasto organismo de pecado que todos os cristãos “inquietos” deveriam rejeitar, sob o perigo de condenação. No entanto, essa atitude gerou polémica sobre a exigência do Pietismo de que a moralidade pública fosse transformada de acordo com os seus princípios particulares, de modo a que teatro, dança, trocas de cartas, fumar e dizer piadas não fossem considerados matérias adiafóricas, ou seja, não foram ordenados por Deus, mas também não foram proibidos. Antes sim, deveriam ser evitados pelo cristão como pecados e abominações diante de Deus. Esta austeridade prevaleceu não apenas entre os mais humildes adeptos do movimento, mas também entre a nobreza pietista, tendo-se até tentado reconhecer oficialmente, por decreto, embora sem grande sucesso.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa