Os olhos claros de Soe Nay Linn
Devido à estreiteza do canal o processo de atracagem obriga a uma progressão do “ferry” uma centena de metros a montante, e depois, de marcha a ré, a uma manobra digna de peritos. Quem diria que aqui puderam aportar navios oceânicos, nesse tempo de ouro, há pouco menos de cinco centúrias, tinha já esta cidade a população que tem hoje?
Do esplendor de outrora, ou melhor da actual ausência dele, resta o modesto desembarcadouro numa azáfama de obras e apinhado de gente aguardando a chegada dos entes queridos ou a há muito aguardada encomenda vinda da grande cidade. Destaca-se da turba um rapaz empunhando um cartaz: “Warmly Welcome Mr. Magalhães de Castro”. É o condutor de “tuk-tuk” enviado pelo hotel onde vou ficar, e que me reconhece de imediato… É fácil: sou o único estrangeiro a bordo. Ao aproximar-me dele reparo no castanho-esverdeado da sua íris, típica matriz entre luso-descendentes asiáticos. Ou muito me engano ou nessas veias corre sangue de um dos temidos mercenários… «Os portugueses instalaram-se em Mrauk U há muito, muito tempo», atira Soe Nay Linn em jeito de apresentação. Parece ter sido antes inteirado da minha procedência… «E tu, és por certo descendente de um deles», replico quase instintivamente. Linn solta uma gargalhada, não nega o meu enunciado e apressa-se a ligar o motor do Bajaj.
A par das pequenas Hiaces e de um variado leque de versões locais da motocicleta, os “tuk-tuks” são os veículos mais comuns nestas paragens. Seguimos por uma estrada recentemente cimentada, ou assim parece a avaliar pelas vias laterais de terra batida e os troços esburacados de onde se levanta a poeira para todo o sempre grudada aos tectos de zinco e às cercas das casas deste simples vilório, outrora capital de um poderoso reino que os resquícios de muros antigos com baixos-relevos atestam.
«É a primeira vez que visita Mya U?», indaga o amigo Soe. Os arracaneses dizem sempre Mya U, jamais Mrauk U. Isso talvez se explique pela famosa alergia asiática aos “erres”, aliada, neste caso, a uma radical aglutinação sintáxica.
Em pouco mais de cinco minutos estamos junto ao portão do Mrauk U Palace Hotel, e mesmo antes de ver o quarto sinto que vou gostar de aqui pernoitar. «Quantos dias conta ficar por cá?», insiste Soe Linn enquanto trato do habitual registo com o sorridente Nyi Nyi Htun, o homem atrás do balcão. Como quase nunca sei quanto tempo vou ficar abomino solenemente perguntas do género. Mas Soe, na realidade, apenas se apresta a disponibilizar os seus serviços de condutor e guia. É legítimo. Nem lhe digo que sim nem que não, mas certo é que nos voltaremos a ver, até porque Soe promete apresentar-me à sua família. Sim, já agora gostaria de tirar a prova dos nove da minha inicial suspeita…
Escreveu um dia Santo Agostinho: “o mundo é um livro, e quem fica sentado em casa lê somente uma página”. E como quero ler o livro inteiro, à noite faço uma caminhada de reconhecimento, na esperança de ser surpreendido pelas misteriosas ruelas desta cidade-aldeia, enquanto busco sítio para jantar. Já vi que não vai ser fácil. Nas imediações do hotel encontro apenas minúsculas mercearias – e lá estão, as roscas e os doces inspirados no nosso pão-de-ló, bem embrulhados em fino plástico! – agregadas a lares e salas de aula nocturnas onde crianças repetem fórmulas engolidas na escola, antiquado processo de aprendizagem; na rua há quem aproveite a ténue luz dos raros candeeiros públicos para reter o conteúdo da sebenta trazendo-me à memória remotos lugarejos tibetanos de há muitas, muitas luas onde os estudantes locais faziam exactamente o mesmo. Será que amanhã é dia de exame?.
Quase sem me dar conta, eis-me no centro da povoação, prenunciado por várias “guest houses” com o ocasional turista no átrio a usufruir da rede móvel, e uns quantos restaurantes. Apesar de limitada, a oferta neste domínio é maior do que em Sittwe. Acabo por optar por um improvisado comedouro junto a uma ponte sem me aperceber que é dos sítios gastronómicos mais badalados do burgo. Parte do soalho do Kaung Thant faz de varanda suspensa sobre o riacho e os troncos de duas árvores servem de limites a uma das paredes.
Não me arrependo da escolha: tenho aqui a melhor experiência culinária desta e de todas as anteriores deslocações a Mianmar. Cada um dos pequenos pratos de peixe ou legumes escolhidos são acompanhados por uma série de acepipes com molhos diversos, todos deliciosos. E se para muitos estrangeiros lhe parecerão estranhos estes caldos aromáticos, na mesma medida ficariam os arracaneses espantados com a nossa generosidade ao derramar o azeite sobre o bacalhau cozido com grão e ovo… Esta comida tipicamente arracanesa assemelha-se bastante, no paladar e no aspecto, à comida indonésia: a sopa, os legumes silvestres, até o baleichão, aqui designado de “nagpi”, ingrediente indispensável em toda a refeição. O restaurante é um negócio de família e a filha mais nova, de totós no cabelo e tanaka nas faces bolachudas, satisfaz a minha curiosidade a respeito das fotos nas paredes de tiras de bambu. O irmão, estudante em Rangum, tornou-se numa famosa estrela da “pop” nacional e isso foi óptimo para o negócio familiar. Podemos dizer que neste caso a fama condiz com o proveito. Apesar das tentativas, nessa noite não encontro qualquer vestígio da antiga Mrauk U. Terei de aguardar pela manhã seguinte para ver nascer o Sol junto às estupas nos arredores de um mosteiro, a umas dezenas de metros do hotel e onde repousam as carcaças de dois camiões Dodges transformados em camionetas de caixa aberta. Servem agora de curral a meia dúzia de cabras… Pelo dístico pintado na lateral, “Moulmein Bus”, aqueles rodados carcomidos pelo tempo percorreram já incontáveis quilómetros de estradas em Martavão e no restante Estado Mon.
Joaquim Magalhães de Castro