CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 31

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 31

A caminho de Mrauk U

Para chegar a Mrauk U, pese a tentadora possibilidade de aluguer de lancha privativa e rápida, armadilha para turistas apressados, surge como escolha naturalíssima o transporte regular de passageiros com frequência diária e cinco horas de duração. Perfeito o programa! Tenho todo o tempo do mundo e agrada-me a ideia de chegar à lendária capital do velho Arracão ao ritmo das fustas de antanho… No terminal fluvial de Sakrokeya aguardam encostadas umas às outras longas e fusiformes embarcações de resina poliéster. A sua estrutura é inteiramente fechada, à excepção da proa junto à cabina do piloto. Certamente aí me irei posicionar, pois não suporto os interiores claustrofóbicos destes “ferries” bojudos com os aposentos abaixo da linha da água, o que faz deles uma espécie de submarinos à paisana.

No cais, a habitual babel: gente, bichos e a mais diversificada equipagem. Difícil mesmo é saber qual o barco escalado para Mrauk U e a hora exacta de partida. Aceno com o bilhete comprado na recepção do hotel na noite anterior e, “quem tem boca vai a Roma”, depressa encontro o que procuro. Mas só depois de atravessada esta espécie de ponte das barcas. A previsível demora de pelo menos hora e meia, enquanto é acomodada no abaulado convés mercadoria de maior porte e algumas motorizadas, permite-me umas quantas fotografias algo satisfatórias. Afinal, os arracaneses, tal como os indianos e os banglas, gostam de posar. Fá-lo com especial panache uma mulher que me mira com alguma altivez enquanto expele umas baforadas dum cachimbo. O seu rosto remete para a etnia chin embora não esteja coberto com as tatuagens que atraem os turistas a Pan Paung, a dita “aldeia das mulheres tatuadas”, a montante de Mrauk U, junto ao rio Lemro.

Reza a lenda que um rei birmanês, ao viajar pela região, ficou de tal modo impressionado com a beleza das donzelas que decidiu raptar uma delas para aumentar o seu harém. Daí em diante os chins passaram a tatuar as filhas para lhes garantir a segurança. Outra versão da lenda apresenta a tatuagem como elemento diferenciador das mulheres de Pan Paung em caso de guerra com os hostis vizinhos. Parece-me esta a hipótese mais plausível. Mas regressemos a Sittwe…

Na margem oposta do Sakrokeya embarcações de madeira exibem típicas popas “acasteladas à portuguesa” (as aspas são minhas) com uma entrada em jeito de janela, óbvia reminiscência dos aposentos do capitão, o único local capaz de proporcionar algum conforto durante as longas jornadas oceânicas. Ao toque de uma buzina automóvel (muitas das partes e alguma da mecânica destes frankensteins da construção naval provêm de veículos de duas e quatro rodas destinados à sucata), o “ferry” põe-se em marcha e eu deleito-me com as obras mortas de autênticas réplicas locais das nossas naus, por aqui bastante comuns, atracadas em terra ou em circulação ao longo do esteiro. E antes que este se atire de cabeça ao caudal do Kaladan, aguço o olhar em direcção a terra em busca de um possível vestígio histórico. E ele não tarda.

Uma centena de metros além da ponte de Sat Yoe Kya, vislumbro na margem esquerda do esteiro – vacas no pasto e umas quantas casas em primeiro plano – aquilo que parece ser a fachada de uma igreja em ruínas. Ou será apenas o troço de uma muralha!? É um relance apenas, mas consigo alguns segundos de filmagem, o suficiente para o registo que poderá motivar investigação futura a esse conjunto avermelhado de tijolos. Coisa antiga é, certamente, e parece anteceder em dezenas de décadas o período colonial britânico.

Vogamos agora em pleno Kaladan com a proa apontada a norte. À nossa direita, ancoradas, uma fragata e duas corvetas da Marinha de Myanmar relembram-nos o conflito fronteiriço em curso a não muitas dezenas de quilómetros daqui. Recordo as palavras do professor Aung: «os nossos jovens lutam pela independência da nossa terra…». Do lado esquerdo, um navio encalhado num banco de areia enferruja paulatinamente. De novo o professor, desta feita o seu comentário acerca da perigosidade dos baixios e das rochas na foz do Kaladan, óbice que levaria os portugueses a utilizarem diferente rota para chegar a Mrauk U.

Com lugar cativo junto à cabina, autorizado pelo sorridente piloto que me arranja até uma cadeira de plástico como quem diz “sente-se aí confortavelmente”, desfruto a frescura da brisa e de uma panorâmica de 360 graus. Com os dentes arruinados pelos sucos do betel e a aspereza da cal, tradicional saco de pano a tiracolo, o homem vai sentado ao volante de pernas entrecruzadas qual Buda meditativo na antecâmara do Nirvana. O volante pertenceu um dia a um Toyota. Mais uma das muitas adaptações locais: em questões de geringonças esta gente bate-nos aos pontos.

Nas margens agora distantes surgem pontualmente barracões com paredes e tectos de zinco com ar de abandono e um cemitério que aparenta ser cristão. Nos arrozais, concluída a primeira colheita do ano; restam as hastes, que depressa irão secar. Em redor, o esparso arvoredo longe está de mitigar o calor; imagino o braseiro no pico do Verão… À tona da água bambus dispostos em triângulos sustêm redes que a seu tempo serão recolhidas por vagantes pescadores manobrando minúsculas pirogas que ao anoitecer se refugiarão nas casotas de palha sazonais plantadas em terra mole. Cruzam por nós barcos de madeira com toldos improvisados: uns levam mercadorias, outros passageiros, ambos devidamente assinalados pelos coloridos estandartes budistas. Quem não tem chapéu de palha protege-se com guarda-chuvas, que nestas latitudes fazem sempre as funções de pára-sol.

Joaquim Magalhães de Castro

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