Os Quakers – XII
Uma das facetas mais famosas dos Quakers é a sua afirmação da igualdade entre todos os seres humanos, uma bandeira que se tornou uma forma de luta. Contra a escravidão, a servidão ou a exclusão devido à cor ou “raça”, os Quakers, desde a sua fundação, têm sido activistas determinados, ontem como hoje.
Nos primeiros anos do movimento Quaker, na década de 50 do Século XVII, a escravidão não fazia parte do quotidiano inglês dos quakers, uma vez que não era muito praticada na Grã-Bretanha. Mas, pelo contrário, nas colónias britânicas das Caraíbas e na América do Norte, era um fenómeno generalizado. A Inglaterra era uma das maiores nações envolvidas no comércio e utilização de mão-de-obra escrava, tendo levado milhões de cativos africanos para o Novo Mundo, para os vender aos donos de plantações e outros magnates.
Nas suas viagens para o Novo Mundo, os primeiros quakers tomaram conhecimento do infame negócio e das suas condições desumanas. Alguns eram proprietários de escravos, mas à medida que se definiam os ideais de George Fox e dos seus companheiros, aumentando a sua fé quaker, logo se aperceberiam que a propriedade de um ser humano por outro contradiz a sua crença na igualdade fundamental de todos os seres humanos (o testemunho da igualdade).
Os quakers não eram os únicos a ter a noção da torpeza da escravidão, mas afirmaram-na como um objecto de luta prioritário. A principal força do movimento abolicionista histórico, na Grã-Bretanha e na América do Norte, seria a determinação dos próprios escravos, mas a contribuição quaker seria fundamental, tanto como refúgio, como estímulo humanista e cristão.
UMA QUESTÃO MORAL
Os quakers assumiram a escravidão como uma questão moral a partir das décadas de 1670 e 1680. Quando George Fox e o seu amigo irlandês William Edmundson visitaram Barbados em 1671, ficaram chocados com as realidades do trabalho escravo. Fox insurgiu-se imediatamente, apelando a um tratamento melhor. Depois, em 1675, Edmundson condenou a escravidão de forma veemente. Pouco depois, em 1688, seriam os quakers de Germantown, na Pensilvânia, a afirmarem que a escravidão era imoral. Foram estes os primeiros de muitos a levantar a questão moral em torno deste flagelo. Mas a liberdade que pautava a vida quaker tornou possível que alguns membros da Sociedade dos Amigos mantivessem escravos, refira-se, o que desencadeou críticas dos irmãos. A irradicação da escravatura entre os quakers ainda demoraria um século. Apesar da magna reunião de 1727, a chamada Britain Yearly Meeting, ter proibido a posse e o comércio de escravos, o abjecto fenómeno ainda perdurou. Na América do Norte, um longo processo de persuasão entre os quakers culminaria em 1774, quando os que possuíam escravos foram instruídos a desistir da escravidão, caso contrário teriam que deixar de ser quakers. Era o fim da escravidão entre os quakers!
Os quakers forneceram uma estrutura de liderança, uma rede nacional fiável e recursos materiais significativos para as campanhas abolicionistas em ambos os lados do Atlântico. Em 1783, os quakers na Grã-Bretanha começaram também uma forte campanha, com base na já extensa rede quaker. O comércio de escravos seria abolido em 1807 e a própria escravidão tornar-se-ia ilegal no Império Britânico em 1833. Nos Estados Unidos, já independentes, os quakers encetaram também uma campanha vigorosa. Não poucos infringiram a lei, ajudando escravos a fugir dos Estados esclavagistas do Sul para o Norte, mais livre. Mas o esclavagismo só seria abolido nos Estados Unidos, finalmente, em 1865, por entre conflitos e dramas violentos. Esta abolição ficaria para sempre indelevelmente ligada à acção e ideais dos quakers. Dizia-se mesmo no Sul, na forma de adágio, entre os escravos, que o melhor para fugir era irem para a Pensilvânia (fundada pelo quaker William Penn), onde os quakers abolicionistas dominavam.
Os métodos pioneiros dos quakers constituíram um modelo extraordinário que evoluiu rapidamente e ilustra os elementos-chave ainda necessários para as campanhas contra o tráfico de seres humanos: pesquisa, liderança de grupo, logótipo, publicações, petições, “lobby”, produção de boicotes, trabalho em rede (“networking”), arrecadação de fundos, legislação e acção directa, leia-se desobediência civil. Foi precisamente assim, nos Séculos XVIII e XIX, que os quakers espoletaram a luta anti-esclavagista nos Estados Unidos, e não só…
Deste modo, os males da escravidão foram gradativa e sistematicamente expostos naquele que é indiscutivelmente o primeiro movimento dos Direitos Humanos que visa garantir os direitos fundamentais dos outros. Os quakers desempenharam um papel proeminente, activo, solidário e moral. Ajudaram a criar um impulso político-moral, que atraiu aliados em outras igrejas e na sociedade em geral, tornando-o um movimento de massas.
Mas países havia onde a escravidão subsistiu, ou onde ainda existe tráfico de seres humanos, para exploração e outros fins imorais, como o trabalho forçado e obrigatório, o tráfico de pessoas, as piores formas de trabalho infantil, a mendicância infantil forçada e as crianças-soldados. A escravidão baseada na descendência (tradicional) ainda existe em alguns lugares ou sociedades. A distinção da contribuição dos quakers gradualmente foi-se fundindo com o compromisso universal com os padrões de Direitos Humanos e a justiça para os quais os quakers, individual e colectivamente, continuam a contribuir, assim como muitos outros. Os quakers continuam ainda hoje muito envolvidos nos movimentos abolicionistas modernos. A British and Foreign Anti-Slavery Society, por exemplo, foi fundada em 1839 e continua nos dias de hoje como Anti-Slavery International (ASI). Ao longo das gerações e décadas, indivíduos, famílias e reuniões locais dos quakers continuaram a apoiar esta organização e o seu trabalho.
Depois da abolição (em 1833 no Império Britânico e em 1865 na América do Norte, no fim da Guerra Civil), os quakers passaram a focar-se no apoio aos escravos recém-libertados, além da garantia da sua efectiva abolição. Com efeito, o quaker britânico Joseph Sturge visitou as Índias Ocidentais em 1833 e denunciou as contínuas injustiças sofridas por ex-escravos nas Américas. As mesmas preocupações seriam demonstradas por outros quakers em relação ao trabalho de negros em colónias europeias, com contratos, mas vivendo e trabalhando como escravos. Assim sucedeu com os angolanos que iam trabalhar na produção de cacau na colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe no princípio do Século XX, nada recebendo e vivendo como escravos, segundo denúncia de Lord Cadbury, um proeminente quaker inglês e dono de vasta fortuna, baseada na produção de chocolate. Mesmo defendendo interesses corporativos, não deixou de ser uma voz quaker firme na causa que defendia.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa