O sonho de Dom Martinho
Martinho ingressa no serviço militar em 1624, cumprindo o seu baptismo de fogo às ordens do quase mítico Rui Freire de Andrade, generalíssimo-mor nas inúmeras escaramuças e batalhas ocorridas nas águas do estreito de Ormuz e do Golfo Pérsico. Nos próximos quatro anos manter-se-á na região, participando no ataque à ilha de Qeshm, ao porto de Dibba e a outros pontos estratégicos da costa do actual Omã e dos Emirados Árabes Unidos.
Suficientemente tarimbado pela tropa regular, Martinho ascende com toda a naturalidade ao posto de capitão. Liderará um dos navios da armada de D. Francisco Coutinho enviada em socorro de Malaca, de novo ameaçada pelas forças de Iskandar Muda, sultão do Achém, tendo sido ferido, este nosso paladino, no decorrer da refrega. Martinho serviria ainda “na armada de alto bordo do general Nuno Álvares Botelho e capitaneou, já na década de 1630, um dos quinze navios da armada da Costa do Canará, sob o comando de Martim Teixeira de Azevedo”, como lembra Manuel Lobato. Também, de 1636 a 1638, ajudaria a assegurar a defesa da barra de Goa, ameaçada pelos holandeses, e socorreria o reino de Jafanapatão (actual Jaffa, Ceilão) e a cidade de São Tomé de Meliapor, no Sul da Índia. Em suma: entre 1624 e 1643, o jovem asiático integra vinte das nossas armadas, doze como soldado e oito como capitão. Uma folha de serviços reveladora do quão longe chegara o arracanês mais português de toda a história. Mas Martinho almejava mais…
Questiona – nem de propósito – o professor Aung o porquê “do apreço dos monges agostinhos pelo nobre arracanês”. A resposta é-nos dada no final da década de 1630, altura em que Martinho, vestindo a pele dum fidalgo, solicita a capitania de uma fortaleza, fosse ela qual fosse. Entrementes, na sua terra natal, em 1638, para sermos exactos, morrera, provavelmente envenenado, o primo Thiri Thudhamma – que em 1622 ocupara o trono deixado vago pelo tio Min Khamaung –, sucedendo-lhe o primeiro-ministro Narapatigri. “A partir dessa altura”, comenta Aung, “o Arracão passa a ser governado por um usurpador; alguém que não tinha sangue real”. Era chegado, portanto, o momento ideal para Martinho entrar em cena:
Aproveitando o período revolucionário da Restauração, este manifestou publicamente as suas pretensões de sucessor legítimo das terras do Arracão, como o comprova a “Relação que dá o Pe. Fr. Niculao da Conceição a El-Rei Nosso Senhor que Deos Guarde, das couzas de Bengala”, datada de 2 de Março de 1644. É sugerido no documento o apoio do Estado da Índia a uma insurreição capaz de fazer sentar Martinho no trono. Assim sendo, e tendo em conta que Martinho era “vassalo” da Coroa Portuguesa, toda a região integraria automaticamente os nossos domínios no Oriente. Especifica Manuel Lobato: “Estes desenvolvimentos teriam resultado das influências que o próprio Dom Martinho movera no reino, para onde embarcou clandestinamente, em 1641, com a cumplicidade dos agostinhos de Goa e contra a vontade expressa do vice-rei Conde de Aveiras, que lhe recusou a necessária autorização. Dom Martinho estava apostado em tirar partido da nova conjuntura política na tentativa de aplicar ao seu caso a semelhança que ele considerava existir com o de D. João IV e da Restauração de Portugal”.
Para o nosso professor de biologia tornado historiador, óbvia era a intenção dos portugueses conquistarem o Arracão “para o converter ao cristianismo, daí os cuidados prestados pelos agostinhos a Dom Martinho”. De facto, alojado no mosteiro lisboeta da Nossa Senhora da Graça, e graças às diligências de Frei Luís Coutinho, Provincial dos frades de Santo Agostinho na Índia, Martinho foi apresentado ao primeiro representante da Casa de Bragança. Não obstante, jamais seria satisfeito o seu desejo, pois “a informação que o vice-rei D. Filipe Mascarenhas anexou ao processo, em 1646, ia no sentido de que o projecto não seria para se encarar a sério”.
Frustrado o intento de regressar à sua terra natal, o arracanês tratou de fazer pela vida… E assim, no derradeiro ano de estada em terra lusitana, “entabulou com o Conselho Ultramarino um intenso processo negocial para satisfazer os seus pedidos de mercês”. O príncipe asiático pedira uma destas três capitanias gerais: Baçaim, Goa ou Mascate. Nenhuma delas receberia, sendo-lhe agraciado a bem mais modesta “capitania do passo de São Lourenço, em Tisvadi, na ilha de Goa; com o direito a tratamento de ‘Senhoria’; com o cargo de membro honorário do Conselho de Estado em Goa, sem direito a assistir às reuniões”, sendo-lhe ainda atribuído o hábito de Cristo. Todas estas benevolências comprovam o seu intenso desejo de ser reconhecido dentro da hierarquia luso-asiática, o que não viria a acontecer. Em contrapartida, receberia trezentos cruzados “para despesas de embarque para a Índia”. Descontente, Martinho alegou que “abandonara o trono de Chatigão para seguir a lei de Cristo”, e que deveria ser recompensado, até porque poderia “servir de exemplo perante os reis da Ásia”. Debalde. Como qualquer outro fidalgo da Índia, viu-se obrigado a mover influências em Lisboa contando para isso com um certo Carlos Ustarte, mercador flamengo dono de diversas casas na Rua da Esperança, “a quem pagou 50 xerafins em tecidos”.
Regressa a Goa em 1646 e uns anos depois toma posse do passo de São Lourenço. Apesar de “pobre e endividado” – como o próprio confessa – Martinho lega as mercês não usufruídas ao seu filho Dom Francisco de Alemão, “sendo sua principal preocupação que ele viesse a herdar o hábito de Cristo e o estatuto de fidalgo”. Martinho morre em Goa, em data incerta, e encontra-se sepultado no cemitério do Colégio dos Agostinhos.
Joaquim Magalhães de Castro