De Akyab a Sittwe
Como já aqui foi dito, a partir de 1518 os portugueses, na dupla condição de guerreiros e mercadores, passaram a ter um papel determinante no Arracão. No fundo, limitavam-se a estender para Sul a área geográfica onde há já alguns anos vinham comerciando e vendendo os seus serviços a sultões e demais senhores de Bengala, à semelhança dos congéneres afegãos e turcos. E de tal modo se integraram na vida política e social que – pode dizer-se sem exagero – essencialmente a eles se deve a ascensão do reino Mrauk U como potência regional.
Não esqueçamos, porém, que o local onde se situa hoje Sittwe era então simples ponto de entrada para três férteis vales irrigados pelo Mayu, o Kaladan e o Lemro, rios interligados numa vasta rede de canais de maré, arroios e ilhotas, e cujos vales aluviais produziam inesgotáveis suprimentos de arroz. Habitavam-nos pescadores sazonais e a área só viria a tornar-se relevante sede do comércio marítimo a partir de 1826, na sequência da captura do Arracão pelos britânicos, “legitimada” pela assinatura do tratado de Yandabo, mera camada de verniz sobre a infame pirática política de canhoeira que com três guerras apenas reduziria um orgulhoso império a mera subsidiária da Companhia das Índias Orientais. Só então foi transferida a sede do poder para aquela que viria a ser designada de Akyab, pois desde 1784 encontrava-se em ruínas a capital Mrauk U. Transformara-a num monte de escombros uma força expedicionária birmanesa de trinta mil soldados, tendo sido deportados os sobreviventes para diferentes partes desse império que sem o saber queimava já os últimos cartuchos da sua existência.
Quatro décadas após o humilhante tratado imposto pelo invasor europeu, Akyab – assim designada por se terem ali aquartelado, nas imediações do templo Ahkyaib-daw, as forças britânicas durante a primeira guerra anglo-birmanesa – contava com vários milhares de habitantes (muitos deles vindos da destruída Mrauk U) e no ano um do século vinte era já o terceiro porto da novel colónia britânica.
Quando viajo pelos trópicos, tenho por hábito acordar bem cedo para ir fotografar. Esse é melhor momento para o fazer. Numa das rotundas de Sittwe, a nova torre do relógio, apesar de vistosa, ao estilo-templo-budista, não chega aos calcanhares da sua antepassada de ferro forjado a assinalar o mercado em frente à Kiss Guest House, para onde me transfiro pois não aguento mais o banzé da construção no referido arranha-céus. Infelizmente não me posso mudar para a Mya Guest House, como era meu desejo. O medíocre serviço praticado levou ao cancelamento da licença para acomodação de estrangeiros, e agora apenas os birmaneses ali podem pernoitar. Surgirá certamente daqui a uns tempos de cara lavada, após trabalhos de renovação, embora com preços actualizados. Talvez a transformem num desses hotéis de charme tão em voga…
Toda uma ala em T da Universidade ali ao lado mantém-se desocupada e na estrada faz-se transportar em bicicletas com assento ajoujado, tipo “sidecar”, gente originária das aldeias vizinhas. Esse popular meio de transporte é veículo para toda a carga; e ponham muita imaginação nisso… Circula também um veículo híbrido, misto de “tuk-tuk” e automóvel, com função de carro de praça.
Noto que a tez dos locais é bem mais clara do que noutras partes de Myanmar, factor ao qual não será estranho o gene português, abundante nestas paragens. É algo de tão evidente que peço a algumas das pessoas com que me cruzo uns minutinhos do seu tempo para lhes poder tirar o retrato. Vejam-me lá este Leonel sorridente, tal e qual um tisnado vareiro no pico do Verão… No trajar, os homens mantém-se fiéis aos “longyis” e aos “sarongs”, justificando a abundância de alfaiates. Esses simples panos de enrolar à cintura não têm bolso, pelo que a carteira é colocada no cós do pano num convite aos larápios, felizmente pouco comuns por estas paragens. Já as mulheres, em contracorrente com o que é habitual por esse mundo fora, não hesitam em quebrar a tradição ao trajar à ocidental, colorindo também o cabelo, em jeito de remate.
A fama do mosteiro de Shwezedi deriva de aí ter habitado, nas décadas de 1920 e 1930, o monge U Ottama, herói do movimento independentista. É, por conseguinte, encarado como o berço do budismo político, disponibilizando gratuitamente, por uma questão de coerência, escola e centro cultural para os mais carenciados. Após concluir três anos de estudos em Calcutá, U Ottama viajou pela Índia, França e Egipto, isto, antes de no Japão leccionar Páli e Sânscrito, prosseguindo depois a sua jornada pela Coreia, Manchúria, China, Annam, Camboja, Tailândia e Sri Lanka.
De regresso à Birmânia britânica, U Ottama inicia profícua actividade política, percorrendo o País com palestras e discursos anticoloniais que o levariam à prisão em 1921. Nos próximos seis anos U Ottama passará mais tempo encarcerado do que em liberdade. Sem qualquer cargo de chefia, este singular monge, admirador de Gandhi, advogava pacíficas manifestações e greves. Situava-se, portanto, a anos luz do incendiário Ashin Wirathu, o célebre monge de Mandalay que em Setembro de 2012 promoveu o plano controverso do Presidente Thein Sein de expulsar do País os muçulmanos rohingya, gerando com isso uma onda de violência sem precedentes.
Joaquim Magalhães de Castro