Fotografia como memória futura
As minhas primeiras impressões de Sittwe serão registadas a partir do “tuk-tuk” que me conduz do aeroporto ao hotel, uns quinze minutos de buzinadelas e desvios “in extremis”, à boa maneira asiática. Recebem-me os sempre detestáveis ruídos da construção civil; há um arranha-céus a nascer mesmo ao lado do pequeno Shwe Myint Mho Guest House e, no lado oposto, aguarda à sombra de uma gigantesca mangueira um belo casarão colonial que parece ter os dias contados. Triste exemplo de um inevitável devir numa cidade sem quaisquer perspectivas de preservação do seu património. E já que dele falamos, nesta rua principal (assim se chama, Main Road) destaca-se a Jama Masjid, imponente mesquita de traça mogol encerrada num quarteirão inteiro. Para a melhor poder apreciar sou obrigado a atravessar uma viela interrompida com sacos de areia, arame farpado e uma guarita da polícia a lembrar os velhos tempos da Birmânia dos generais. Servem os itens de separadores entre a frenética rua principal e a tranquila congénere que lhe é paralela.
Procuro no edifício, e rapidamente encontro, elementos da arquitectura europeia aqui introduzidos pelos portugueses: degradadas colunas jónicas e coríntias com motivos florais nos capitéis e nos frisos em gritante contraste com os tectos abobadados e as cúpulas arredondadas dos minaretes com estrias de claro pendor oriental. Enquanto aguarda as necessárias obras de reabilitação, mantém-se a Jama Masjid à sombra do generoso arvoredo e vai servindo de suporte, um dos seus muros, a uma série de tendinhas com comida de rua. Nada atractivas, por sinal, e com pouquíssima escolha. De salientar, apenas pelo exotismo, os ovos de tartaruga cozidos apresentados como delicacia regional. De resto, não preciso de muito tempo para me aperceber da parca oferta de Sittwe em termos gastronómicos… Dou-vos um só exemplo: numa travessa com água quente repousam as entranhas gordurosas de borrego (ou vaca) e uns quantos outros miúdos, sendo proposto para acompanhar semelhante mixórdia centos de dentes de alho e metades de limas. É a versão local do “hot pot”. Muito obrigado, mas passo. Mas que saudades da comida rua de Rangum!
Grande parte do casario urbano mantém-se intacto, misto de rés-de-chãos em tijoleira e primeiros andares de madeira, sendo o telhado invariavelmente de zinco, onde não raras vezes secam pedaços de miolo de coco. Varandas e varandins com rendilhados decorativos de extremo bom gosto, invariavelmente com os tais respiradouros em formato de cruz grega, e nas janelas as típicas portadas e dobradiças de abertura ao meio nas quais por vezes secam peças de roupa. Nas fachadas de uma ou outra casa avistam-se bonitos gradeamentos de ferro forjado (lembro-me do Porto, onde os há em abundância), sinal de maior desafogo económico do proprietário. O piso térreo comporta sempre um negócio qualquer ou serve de ponto de encontro e de socialização para os amigos. É claro que têm vindo a surgir habitações de betão armado e de ladrilhos, mas também nestes casos se vão perpetuando os elementos arquitectónicas europeus. Pela negativa: um belo edifício com fabulosas varandas e lindíssimos beirais aguarda demolição com o cínico patrocínio da Alpha Cement cujo mote é “build your dreams”. É isso: a destruição sistemática do belo e antigo é sonho de todo o novo rico. Quando cá voltar sei que estará no seu lugar uma aberração qualquer. Fotografo com sofreguidão, fazendo desde logo um apelo à memória. Depois do pesadelo, e ao virar da esquina, a surpresa: um edifício de traça sino-portuguesa totalmente recuperado. Trata-se de uma casa particular com um armazém acoplado. Gente endinheirada sem o vírus do novo-riquismo é coisa rara nos dias que correm…
Mais adiante, o Mandalay Store tem abertas de par em par bonitas janelas com estores de madeira, bastante comuns nas fachadas por mais pobres que elas sejam. A servir de vedação, aqui como no Vietname e no Laos, material militar que ocasionalmente serve de elemento decorativo das fachadas em substituição do mencionado ferro forjado. Não são nada esquisitos os vendedores ambulantes de lotarias e os barbeiros locais, pois no mais recôndito espaço, às vezes em pouco mais de um metro quadrado, improvisam o seu local de trabalho, sob o olhar das beldades de cinema e dos jogadores de futebol, embora os mais religiosos prefiram a companhia de Buda e duns quantos “nats” acomodados nos respectivos altares. E nós a queixarmo-nos da falta de espaço!
Um Cristiano Ronaldo sorridente de dentuça arreganhada publicita, em vez do salão de beleza ou cabeleireiro da praxe, um arrojado Tok Design… Mas afinal onde estão os restaurantes desta terra? Em busca deles chego ao mercado municipal, edifício pintado de amarelo torrado vizinho de um outro da mesma cor embora com função administrativa. Amarelo e azul ou amarelo e verde, cores combináveis nesta movimentada rua onde se atropelam carroças puxadas à mão e se descarregam alguns camiões e noutros se aconchega a carga. O sorriso das crianças, esse, é igual em toda a parte.
Tal é a febre de fotografar que começo a repetir edifícios e como o Sol já se vai pondo dirijo-mo à beira-rio. Planeiam-se aqui grandes obras, desta feita, com o beneplácito indiano. A terraplanagem para o prolongamento do porto de águas profundas já foi feita. Por ora, ancoram ao largo uma série de barcos inteiramente de madeira com os típicos castelos à popa inspirados nas naus portugueses. Esta característica é aqui bem mais óbvio do que noutras partes da Ásia. Se lhe acrescentarmos dois mastros e uma mezena passam bem, quando avistados ao longe, por caravelas ou naus. Parece-me perfeito o quadro, e para compor a ode marítima não falta sequer o voo cruzado das gaivotas.
Joaquim Magalhães de Castro