CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXVII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXVII

Os Quakers – IV

Já aqui fizemos notar que o século XVII foi uma época turbulenta na Grã-Bretanha e na Irlanda, sob o signo da guerra civil e registando-se grandes mudanças políticas, religiosas e sociais. Iniciou-se também, por meio a esse contexto difícil, a colonização britânica da América do Norte e das Caraíbas, com o subsequente comércio de escravos no Atlântico, de forma a suprir a penúria de mão-de-obra nas economias de plantação nas Américas, onde terras férteis não faltavam, ao contrário de braços para as trabalhar. Como vimos, mau grado as perseguições e problemas, os Quakers instalam-se em definitivo nas colónias britânicas da América.

Mas nas Ilhas Britânicas, o contexto não era pacífico. Duas instituições assumiam o protagonismo, ora a par ora em conflito ou alternância. No início do século XVII, James I, como Rei de Inglaterra (e País de Gales), e VI da Escócia, imbuído de absolutismo, assumia-se como mandatado por um direito divino para governar o Reino que dominava todo o arquipélago britânico desde a união de 1603. Mais tarde, no final do mesmo século, o Rei Guilherme III (1650-1702), que reinou entre 1689 e 1702, e a Rainha Maria I (1662-1694), eram rei e rainha em parceria com o Parlamento. Antes, a comprovar esta tensão institucional, na década de 1640 vivera-se em guerra civil entre o Rei e o Parlamento, o que provocou enorme instabilidade a todos os títulos em Inglaterra, País de Gales e Escócia, culminando no julgamento e execução de Carlos I em 1649.

Carlos II reinou entre 1649 e 1651, só regressando a Coroa ao Reino em 1660, na “Restoration” (“Restauração”), ainda com Carlos II. Durante nove anos, naquela terrível década de 1650, não havia rei e a Grã-Bretanha fora “uma república” (“Commonwealth” ou “Comunidade”), liderada de forma implacável por Oliver Cromwell e pelo Parlamento. Nesse período “republicano”, Cromwell invadiu e “pacificou” de forma brutal a Irlanda, assumindo o domínio, despótico e terrível, da ilha, maioritariamente católica. Depois da morte de Cromwell, em 1658, a monarquia não demorou a ser restaurada, com Carlos II, em 1660, mas com o consentimento do Parlamento.

CONTEXTO RELIGIOSO

A dimensão religiosa é importante neste conflito, no qual os quakers brotam e se expandem, como temos vindo a rememorar. Com efeito, a luta entre o Rei e o Parlamento tinha profundas implicações religiosas. Já no início deste plúmbeo século XVII, a única religião autorizada no Reino era a Igreja de Inglaterra, ou Anglicana. Qualquer religião que não fosse a Anglicana, seria perseguida e extinta, tal como os seus membros e fiéis, principalmente da Igreja Católica, os denominados “papistas”, que conheceram naqueles tempos, na Inglaterra, Escócia e Irlanda, anos sangrentos, crueldades inenarráveis e as mais desditosas violências. Mas quase no ocaso do século XVII, volvidos esses tempos difíceis, em 1687-1689, foi aprovado o Acto de Tolerância, pelo qual se permitia que todos adorassem livremente como quisessem, professassem a sua religião como entendessem, desde que não pusessem em causa a soberania no Reino. E foi nesse meio tempo, brutal e de chumbo, que pregadores itinerantes espalharam novas ideias religiosas e novos grupos religiosos surgiram, dois dos quais, quakers e baptistas, vingaram e sobreviveram até aos dias de hoje. Até 1687, também eles, ou os seus nódulos fundacionais, foram amplamente perseguidos pelas suas crenças. Depois de 1789, passaram a professar abertamente.

A dimensão política e social deste século e as suas repercussões no clima religioso assume também um papel relevante como factor dinamizador de descrença e sectarismo dentro da Igreja Anglicana, mas não só… Muitas novas ideias políticas pululavam então e interagiram com o fenómeno religioso. A guerra civil radicalizou muitas pessoas, com recrutamentos forçados para as milícias de ambos os lados, muitas mulheres e crianças foram mortas, vilas e aldeias arrasadas e meios de subsistência destruídos.

Em 1647, os Putney Debates (uma série de debates entre Outubro de 1647 e Janeiro de 1658, em Putney, perto de Londres, no Surrey), abertos a todos, exploraram ideias de liberdades civis, sufrágio universal (para os homens, recorde-se…), igualdade e liberdade religiosa, culminando num manifesto que consagrava os fundamentos desses princípios. Os dízimos (um imposto sobre o valor da produção, usado para sustentar o clero e outros grupos sociais, em particular da nobreza) foram então questionados em Putney, mas não seriam abolidos até 1836-1839.

Os “diggers” (“escavadores”), um movimento religioso que surgira na época, por seu lado, defenderam, nos Debates, a propriedade partilhada e uma vida comunitária em terras agrícolas comunicantes, formando núcleos (do género dos amish, menonitas ou huteritas).

Os “levellers” (“niveladores”), uma facção política, de pendor republicano, defendiam, por seu turno, a igualdade completa (para os homens) na tomada de decisões.

Os quakers serão um produto deste clima de instabilidade e tensão entre facções, políticas ou religiosas.

Do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos na colonização europeia do “Novo Mundo”, as Américas, que serão, como se já começou a vislumbrar, determinantes para o futuro dos quakers. Os povos ancestrais “americanos” estavam cada vez mais reduzidos em termos de efectivos demográficos, mais confinados e gradualmente afastados das suas terras originais, à medida que mais e mais cidadãos de países europeus viajavam para as suas colónias americanas, para tentarem uma nova vida, ganharem a liberdade e fazer “esquecer” o passado. Outros iam forçados, sem quererem ou desejarem nem saberem o destino: maioritariamente, provinham de África. Outros, vinham em degredo, para sempre, em comutação de penas. Grandes plantações de tabaco, algodão e de cana-de-açúcar foram implantadas, quintas surgiram e pequenos assentamentos populacionais cresceram ao longo da costa do Atlântico Norte, muitas vindo a tornarem-se grandes cidades.

Os Pilgrim Fathers, que navegaram para Nova Inglaterra em 1620, são um dos exemplos famosos desta diáspora europeia que começou no século XVII. A principal área de colonização da Grã-Bretanha nessa época era a costa do Atlântico Norte e algumas ilhas nas caraíbas (ou Antilhas, como a Jamaica, entre colónias de povoamento e de exploração económica, ou de mera estratégia anti-francesa ou anti-espanhola, normalmente…).

O comércio de escravos expandiu-se rapidamente, para atender às crescentes necessidades de mão-de-obra nas novas colónias, e portos como Bristol e Liverpool prosperaram como pontos de ligação com o Novo Mundo ou África, de onde provinham os escravos. Uma das motivações que estão na origem e que mais distinguem a identidade quaker estava a formar-se: o anti-esclavagismo….

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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