O triste destino da infâmia
No auge da sua popularidade e soberba, “no tempo do anterior rei Bramá”, quando “estava na maior força do seu mando e valia, com título de irmão de El-Rei”, Diogo Soares cometeria um dos actos mais vis da sua vida. Habitava nessa altura em Pegu rodeado de muita gente, tanto a pé como a cavalo, naquele típico fausto que Diogo do Couto denunciou no seu “Soldado Prático” e que as magníficas ilustrações do espião holandês Jan Huyghen van Linschoten tão bem demonstram.
Numa das deslocações ao palácio do rei foi Soares atraído pelos festejos vindos de uma nobre casa. Inquiriu e soube assinalarem-se ali as núpcias da filha de um abastado mercador com o rebento de um outro de igual gabarito. Detendo o elefante em que seguia, Soares desejou aos noivos longa vida e felicidade, gesto que sensibilizou o pai da noiva, e este, por consideração ao português, “pois a dignidade e a grandeza da pessoa que lha fazia era quase tamanha como a do próprio Rei”, trouxe a filha à rua. Fazendo ambos uma vénia agradeceram as palavras, e a moça, por ordem do pai, ofereceu o anel que tinha no dedo. Diogo Soares, em vez do recato e respeito que se exigia, e “como era por natureza sensual e desonesto”, pegou no anel mas não largou a mão da formosa donzela. Segundo as suas palavras, “seria dele ou de mais ninguém”. O comerciante protestou veementemente; e de imediato o mercenário ordenou ao capitão da guarda de nacionalidade turca que o matasse. Fugiu o velho e em socorro da filha veio o noivo, que de imediato foi morto, assim como o seu progenitor e outros seis familiares.
Fernão Mendes Pinto pede desculpa ao leitor “por não contar por extenso as particularidades que houve neste feio caso”, e isso “por honra do nome Português”. Pois é, esse bom nome tantas vezes manchado! Nunca deixaria de denunciar as baixezas cometidas por portugueses no Oriente nas páginas da sua imorredoura obra o futuro eremita do Pragal, num sincero e inédito acto de contrição. Resta acrescentar que a donzela se suicidou com um cordão antes que Diogo Soares a pudesse ter, comentando a propósito esse depravado português mais tarde “que mais lhe pesara não a ter conversado do que se arrependera de a ter tomado”.
Nunca mais ninguém poria os olhos em cima do pai da desafortunada rapariga. Permaneceria em casa, escondido, vivendo da esmola dos próprios serventes, à espera de “outro Rei, outros governadores, e outra justiça”. E quando esse tempo chegou – concluíra Diogo Soares a sua participação na segunda e bem sucedida conquista de Ayutthaya; morto estava o rei seu protector e antigo companheiro de armas Bayinnaung; era, enfim, Diogo homem de considerável idade –, o velho saiu de casa “com uma grossa corda ao pescoço, e com uma barba muito branca, e já então muito comprida que lhe dava abaixo dos peitos”, e dirigiu-se ao templo do “deus dos aflitos”. Com o ídolo do altar nos braços clamou justiça contra esse maldito estrangeiro desejando que “a serpe tragadora da côncava funda da casa do fumo” lhe consumisse a existência e lhe despedaçasse “as suas carnes no meio da noite”.
As duras palavras chegaram aos ouvidos da muita gente que foi engrossando um cortejo rumo ao palácio do rei exigindo, em nome desse deus da aflição, que as veias do estrangeiro ficassem “tão vazias de sangue quão cheio está o inferno das suas más obras”. Virou-se o rei para os assessores e eles aconselharam-no a não ignorar a vontade do povo, e muito menos a da divindade pois se dela duvidasse também ela “duvidará de te sustentar na dignidade em que estás posto”. Temente e supersticioso, o rei, qual Pôncio Pilatos, tranquilizou a turbamulta e mandou um meirinho seu a casa de Diogo Soares, apanhado de surpresa com tão radical mudança de cenário. De nada valeria a resistência do filho, o mestiço Baltasar Soares, afastado à paulada pelos soldados que entregaram o velho mercenário ao pai da noiva desonrada e este o conduziu ao citado templo e ali incentivou a populaça a apedrejar até a morte “aquela serpente maldosa”. Dito e feito. Não contentes com o crime, os populares retiraram o corpo inerte, desmembraram-no e os mais moços arrastaram pelas ruas a cabeça e as tripas de Diogo Soares, “a que toda a gente dava esmola, como a uma obra muito pia e muito santa”.
Satisfeita a raiva sobreveio a cobiça e no subsequente saque da casa do português nem as telhas sobraram; e como não foi encontrado o tesouro que todos ansiavam, a cega e fanática chusma tratou de assassinar os escravos e criados daquele domínio, e “com tamanho excesso de crueldade que ficaram ali mortos trinta e oito, entre os quais sete Portugueses que inocentemente padeceram pela coisa de que não sabiam nada”. Nos despojos acharam o equivalente a trezentos mil cruzados e nenhuma da tão badalada pedraria que muitos tinham visto Diogo Soares exibir “no tempo da sua prosperidade, se afirma que pelos preços dali da terra valia mais de três contos de ouro”. Acreditava-se que o português havia enterrado em local secreto toda essa riqueza. Curiosa a forma como nos é descrita toda a cena, pois parece haver um paralelo com a paixão de Cristo… Tal como Jesus, Soares foi autorizado a que alguém o acompanhasse no caminho para o suplício; um certo português que posteriormente relataria a Mendes Pinto os acontecimentos.
“E desta maneira”, escreve o peregrinador, “acabou o grande Diogo Soares, que a fortuna tanto tinha levantado naquele reino de Pegu, que chegou a ter título de irmão de El-Rei, que é ali o mais alto e supremo de todos, com duzentos mil cruzados de renda, e a ser capitão geral de oitocentos mil homens, e governador supremo, acima de todos os outros, dos catorze reinos que então dominava o Rei do Bramá”. E filosoficamente conclui: “Mas é a condição dos bens mundanos, principalmente dos mal adquiridos, serem sempre meio e caminho de desventuras”.
Joaquim Magalhães de Castro