O doce vinho e as fraquezas do rei
Vou-me deixando ficar junto ao mar pois o corpo pede e quando o corpo pede convém ouvi-lo. Alimentação racional e saudável não é tarefa difícil nestas paragens. Nas cercanias do albergue Htein Lin Thar abundam botecos, embora se note no comportamento e olhar de alguns dos proprietários um mal escondido despeito pelo intruso, e uma vez ou outra lá vem a tentativa de extorsão de umas centenas de kyats a mais no preço do que se adquire.
No caso dos restaurantes improvisados na praia onde, instalado numa cadeira de plástico afundada na areia, tenho o privilégio de poder assistir a alguns magníficos pôr-do-sóis, então, se és estrangeiro, o preço duplica de imediato. Por norma evito restaurantes vocacionados para o paladar ocidental. Costumam não ser carne nem peixe, quando não são autênticos barretes. Porém, de tão inquinado está o sistema que muitas das vezes acabamos por ser melhor servidos nesses locais e assim nos vamos voluntariamente guetizando. O Ocean Pearl é um desses raros exemplos de invejável meio termo. Aqui, aliado à excelência da comida, conto com a simpatia da senhora Susu, sempre pronta a ajudar-me nas minhas investigações. «– Em Portugal há bom vinho não é?», pergunta retirando da prateleira uma garrafa de rosé “Aythaya”, fruto da iniciativa de um grupo de alemães que em 1998 testaram os primeiros pés de videiras importadas da Europa, não muito longe do lago Inle e da cidade de Kalaw, com resultados que superaram as expectativas mais optimistas.
Mas se no século XXI cabem os louros a germânicos e a gaulesas, deve-se aos portugueses o pioneirismo da presença do “néctar dos deuses” em terras birmanesas. Há vários dados que o comprovam; o mais óbvio encontramo-lo nas páginas da imortal obra de Mendes Pinto, e é, podemos dizê-lo, um caso de vinho à mesa do rei. Como personagem principal temos de novo o “rei Bramá”, ódio de estimação de Mendes Pinto. Na descrição do cerco a Prome, o autor classifica-o como alguém de “baixo sangue e geração, em quem a crueldade e o desejo de vingança costuma ter mais lugar do que nos generosos e valentes”. Realça depois o seu pendor homossexual, “era por natureza afanchonado”, neste caso acompanhado de forte misoginia, “era inimicíssimo de mulheres, embora as tivesse naquele reino, e em todos mais de que era senhor, tão alvas e tão formosas que muito poucas lhes levam vantagem”.
Além das fraquezas da carne, Tabin Shwethi tinha uma outra dependência, adquirida após o regresso da campanha siamesa. Ele que sempre levara uma vida disciplinada, rapidamente ganhou gosto ao vinho que continuamente lhe oferecia um jovem mercenário português ao seu serviço. Curiosamente, esta informação provém das fontes birmanesas, pois Mendes Pinto e os nossos cronistas oficiais nada referem sobre o assunto. Consta que em pouco tempo Tabin se tornou alcoólico e renunciou à actividade militar entregando os deveres da governação ao seu braço direito Bayinnaung. Estranha atitude para quem sempre estivera em constante campanha militar, pelo menos desde 1534… Assim, em vez de conquistar e pilhar, Tabin dedicou-se à caça e à bebida, sempre na companhia do anónimo soldado da fortuna, por sinal, o primeiro enólogo do Sudeste Asiático a quem o rei birmanês ofereceu uma cortesã real como esposa. Digam-me lá se isto não dava um belo filme?
Desesperados, os ministros aproximaram-se de Bayinnaung pressionando-o a assumir o trono, mas o fiel amigo de infância de Tabin sempre se recusou, embora tudo fizesse para livrar o seu senhor da “má companhia”. Prendeu o mercenário produtor de vinho, pagou-lhe um valor que achou justo pelos serviços prestados, e colocou-o num navio – provavelmente português –, expulsando-o assim do País. Porém, os estragos nas bélicas questões de Estado eram já consideráveis.
No início de 1550, pressentindo fraqueza para os lados do paço real, Smim Htaw, ex-monge e meio-irmão de Takayutpi (antigo senhor do Pegu), levantou uma rebelião na região de Rangun. Tabin Shwethi pediu a Bayinnaung que a reprimisse, enquanto fazia uma outra viagem de caça no delta de Irrauádi. Foi essa viagem, porém, organizada por Smim Sawhtut, governador de Sittaung, que planeava assassinar o rei e ascender ao trono. A comitiva montou acampamento em Pantanaw, onde passaram semanas em busca de um elefante branco, animal extremamente auspicioso de acordo com a tradição birmanesa. Após paciente espera de quase três meses, Sawhtut finalmente conseguiu que os seus homens de confiança fizessem a guarda pessoal ao rei. E assim, na manhã de 30 de Abril de 1550, festejava Tabin o seu trigésimo quarto aniversário, dois espadachins entraram na tenda real enquanto este dormia e decapitaram-no. O império construído nos últimos quinze anos desfez-se num ápice após a morte do “rei Bramá”.
Em vez de se submeter ao sucessor escolhido, Bayinnaung manteve-se independente e dispôs-se a restaurar, e estender, o império que ele e Tabin Shwethi tinham erguido. Levar-lhe-ia apenas dois anos. Logo lá iremos… Por enquanto, e para concluir, breve nota toponímica. O termo “Pantanaw” faz lembrar a palavra “Pântano”, e de facto a zona circundante é bastante irrigada, dada a proximidade do Irrauádi. É claro que não passa de mera suposição, mas a hipótese do termo “Pantanaw” ter origem portuguesa não é descabida. Acrescente-se que Pantanaw é a terra natal de U Ba Nyan, nome maior da pintura moderna birmanesa, e do secretário-geral das Nações Unidas, U Thant, o terceiro da conta geral, no cargo de 1961 a 1971.
U Thant mediou as negociações entre John F. Kennedy e Nikita Khrushchev durante a crise dos mísseis cubanos de 1962, ajudando a evitar uma catástrofe global, e durante seu segundo mandato ficou conhecido por criticar publicamente a conduta norte-americana na Guerra do Vietname.
Joaquim Magalhães de Castro