Por aquele rio abaixo
Será interessante tentarmos identificar o percurso de Fernão Mendes Pinto e companheiros após a sua inesperada libertação até à chegada ao porto de Cosmim. Não me parece difícil. A descrição coincide com a realidade geográfica do vale do Irrawadi e as viagens daquela época eram feitas rio acima e rio abaixo.
Colocando logo de parte a possibilidade de terem seguido para Sul ao longo da costa arracanesa, e considerando que, completamente desnorteados, precisaram de três dias e meio para ultrapassar “uma serra muito agra”, parece evidente que os nossos heróis atravessaram a cordilheira de Arracão, até porque depois, “sem caminho nenhum, nem outra companhia além de grande número de tigres e cobras”, depararam com umas “campinas pantanosas” e guiados por uma fogueira ao longe foram “amanhecer junto de um grande lago povoado à roda de algumas aldeias de gente pobre”. A consulta de um mapa passa doravante a ser obrigatória…
Apercebo-me, assim, dalguns lagos não muito longe da cidade de Pyay (antiga Prome) e de um outro bem mais abaixo. Qualquer deles pode ser o lago mencionado na “Peregrinação”. Quanto ao “grande rio”, ao longo do qual caminharam mais de cinco dias, não pode ser outro senão o majestoso Irrawadi. Pinto menciona depois um pequeno templo habitado por um velho eremita que deu guarida aos portugueses durante dois dias. Neste caso, várias são as opções: não faltam pagodes e eremitérios nas margens desse rio. Seguindo a lógica do mapa, e tendo em conta que não o atravessaram (o Irrawadi é tão largo que em certos pontos pode ser confundido com um lago), a pequena povoação de Oke Shit Pin apresenta-se como séria candidata. Conta com um ancestral mosteiro budista e, curiosamente, também uma igreja católica dedicada a Santa Teresa. Durante a estada os foragidos são informados que aqueles domínios eram ainda do rei do Savady, hipótese perfeitamente plausível pois naquela época Arracão prestara auxílio militar a Prome, ameaçada pelas forças birmanesas. Pinto chama a atenção para “um cavalo de arame que estava como ídolo no altar” ao qual o eremita prestava especial devoção. Ora, cavalo sem cavaleiro simboliza renúncia budista, e na tradição xamanística do Leste da Ásia e da Ásia Central representa a alma humana, o bem-estar e a fortuna.
Relatou-lhes o monge uma macabra história relacionada com a fundação desse reino, “havia duzentos e trinta e sete anos”, fruto de sangrenta conquista militar, como sempre acontece com estas coisas de reinos e afins. Aconselharam o supersticioso monarca, os seus sumo-sacerdotes, a sacrificar ao deus da guerra, “em agradecimento pela vitória”, todas os crianças do sexo masculino que se encontravam cativas, pois se não o fizesse quando aquelas crescessem e se fizessem adultos haveriam de lhe tornar a tomar o reino. O rei não hesitou. Reuniu os inocentes num praça, “os quais eram oitenta e cinco mil”, e passou-os todos à espada, “com muitíssima crueldade e efusão de sangue”, antes de os queimar numa gigantesca fogueira sacrificial. Esta espécie de versão birmanesa da matança das crianças por Herodes (o número apresentado por Fernão deverá ser, como habitual, manifestamente exagerado) não deixa de ser curiosa, se a inserirmos nesta vasta área geografia onde as sucessões dinásticas foram desde sempre marcadas por actos de enorme crueldade. Mas, como diz o povo, e bem, “Deus não dorme”. O castigo chegaria em forma de “coriscos e fogo divino” não poupando nem o rei, nem a sua família, nem os seus sacerdotes, “trinta mil ao todo”, cujas almas penadas passaram a ouvir-se naquele lago todas as luas novas e luas cheias, “com uns bramidos tão espantosos que a gente pasmava de medo”.
Não admira pois que toda aquela terra se despovoasse, “não havendo nela senão oitenta e cinco ermidas, em memória dos oitenta e cinco mil meninos que o Rei, sem causa, só pelo conselho dos seus sacerdotes, mandara matar”. Posiciona-se, neste jogo de tentar encaixar peças no “puzzle”, o pagode de Shwe Myin Tin, uns quilómetros a sul da pequena povoação de Tonbo, e as centenas de imagens de Buda, de todos os tamanhos e feitios, escavadas nas acidentadas paredes do complexo montanhoso de Arauk que ao longo de vários quilómetros acompanha o Irrawadi.
Pinto e companheiros prosseguiram a jornada e ao fim de dois dias e uma noite de contínua caminhada chegaram a uma aldeia, mas evitaram-na: receavam qualquer espécie de contacto humano. Doravante viajariam apenas de noite, “às cegas por aquele rio abaixo até onde a ventura nos guiasse”, mantendo-se escondidos na mata durante o dia. Diz-nos o viajante que ao fim de dezasseis dias de “trabalhosa e triste peregrinação”, numa chuvosa e escura noite depararam com uma luz que se movimentava: era uma embarcação que a determinada altura parou. Saíram em terra os seus ocupantes para dormir numa barraca ali próxima, deixando a barca “meio enterrada na lama, e atada a uma vara”. Os oito portugueses viram ali uma oportunidade de ouro. Pé ante pé aproximaram-se da dita, empurraram-na para o rio e nela embarcaram com toda a pressa, “a remo pelo rio abaixo sem rumor nenhum”.
Joaquim Magalhães de Castro