A hipocrisia e os jogos de poder
Em declarações à agência noticiosa FIDES, o padre Peter Suleiman, secretário-geral da Conferência dos Bispos Católicos do Sudão e do Sudão do Sul (SSSCBC, na sigla em Inglês), garantiu que, no passado dia 27 de Abril, no decorrer de violentos confrontos entre as forças do exército sudanês e o grupo paramilitar Apoio Rápido (RSF), pelo menos dois projécteis explosivos atingiram a catedral Mary Queen of Africa, na diocese de El-Obeid. O primeiro desses obuses atingiu a casa paroquial, e o segundo destruiu a entrada do templo e estilhaçou todos os vidros do edifício. Decorria nessa altura uma cerimónia religiosa presidida pelo bispo D. Tombe Trille; porém, nem ele nem os sacerdotes e fiéis ali presentes sofreram quaisquer danos. O padre Suleiman aproveitou para lembrar que todos os religiosos da Igreja Católica permanecem nos seus postos, “excepto as Irmãs do Colégio São Francisco”, que vivem junto a um quartel do exército, e, por questões de segurança, foi-lhes aconselhada a evacuação para outro local.
O secretário-geral da Conferência Episcopal afirmou que o conflito tem vindo a destruir património edificado e a privar as pessoas de “comida, água e electricidade”, sugerindo a todos os sudaneses orações pela paz, “que bem precisas são”.
Enquanto as atenções da Imprensa internacional se concentram nos combates na capital Cartum, diversas outras zonas do Sudão são afectadas seriamente pelos confrontos entre o exército e o RSF, sobretudo em Darfur, reduto destas últimas.
Como bem sustenta num texto, Dario Salvi, jornalista da Asian News, os Emirados Árabes Unidos criaram a sua própria esfera de influência na região ao apoiarem simultaneamente os dois “generais” que do Sudão fizeram o seu campo de batalha. Abdel Fattah al-Burhan, comandante-em-chefe das Forças Armadas Sudanesas, e Mohamed Hamdan Dagalo, mais conhecido como Hemeti, ou Pequeno Mohamed, chefe do RSF, “são vistos como peões numa luta de poder mais ampla que abrange todo o Chifre de África”. O jornalista italiano cita, a propósito, Andreas Krieg, professor associado do Departamento de Estudos de Defesa do King’s College London, para quem “a história do envolvimento dos Emirados Árabes Unidos no Sudão mostra como uma monarquia relativamente pequena pode exercer uma influência muito além de seu peso geo-estratégico, com o ramo Bani Fatima, da família real de Abu Dhabi, delegando actividades estatais a substitutos, como particulares, empresas, bancos, comerciantes, milícias e mercenários”. Embora a sua presença oficial no Sudão seja administrada por canais oficiais – Ministérios das relações exteriores e da segurança –, redes obscuras que convergem em Abu Dhabi e Dubai são os verdadeiros intermediários do poder. A relação com o senhor da guerra do Sudão, Hemeti, é especialmente reveladora, “pois baseia-se numa teia de conexões e actividades aparentemente aleatórias que, directa ou indirectamente, estão ligadas a Abu Dhabi com interesses que vão desde capital e armas, até ouro e mercenários estacionados nos próprios Emirados Árabes Unidos”. A descoberta de bombas termobáricas compradas pelos Emirados Árabes Unidos nas mãos do RSF sugere que Abu Dhabi desempenha um papel mais directo. Através de “actores” na região, as redes dos Emirados Árabes Unidos operam de forma mais ou menos orgânica, facilitando Abu Dhabi os fluxos de capital e fornecendo a infraestrutura de suporte. Conclui Dario Salvi: “É por isso que quem quiser acabar com os combates no Sudão, mesmo nos Estados Unidos, deve colocar o indicativo 971, porque qualquer estrada para Hemeti passa inevitavelmente pelos Emirados”.
Recorde-se que a actividade dos missionários católicos romanos no Sudão remonta a 1842, quase meio século antes da chegada dos anglicanos e dos presbiterianos norte-americanos. Uns e outros seriam perseguidos durante a vigência dos diversos regimes militares e intermitentes guerras civis. As perseguições anticristãs cresceram após 1985, com assassinatos de líderes religiosos e a destruição de aldeias, igrejas, hospitais, escolas e missões. Contudo, e apesar das perseguições, o número de cristãos sudaneses aumentou – de 1,6 milhões, em 1980, para onze milhões, em 2010. Um estudo de 2015 estima que cerca de trinta mil muçulmanos se tenham convertido ao Cristianismo. E isto, apesar de algumas interpretações da lei muçulmana no Sudão não reconhecerem as conversões fora do Islão, considerando até serem crimes a apostasia os casamentos com não-muçulmanos. Na verdade, o Sudão é das nações mais hostis aos cristãos: a liberdade de religião é sistematicamente violada. Em 2011 – antes da independência do Sudão do Sul – mais de dois milhões de sudaneses praticavam o Catolicismo Romano, principalmente no Sul (cinco por cento da população era católica devota). Tendo como padroeira a ex-escrava Santa Josefina Bakhita, canonizada em 2000, os católicos sudaneses congregam-se em nove dioceses, duas arquidioceses e cinco catedrais.
Na sua visita ao País, em Fevereiro deste ano, o Papa Francisco pediu o «fim do ódio étnico» através de poderosas mensagens de paz e reconciliação, tendo apelado à imediata deposição das armas. A visita foi bem recebida pela população maioritariamente cristã (ansiosa de mudança num país em permanente conflito e carência), mas infelizmente de nada serviu o “grito” do Santo Padre. E de novo ali estão: mergulhados num conflito fratricida.
Joaquim Magalhães de Castro