Costa da Memória

Rumo ao Magrebe

No ano em que se assinalam os 600 anos das relações luso-marroquinas, iremos percorrer toda a costa oeste do Magrebe e da Mauritânia, de Ceuta a Dacar, com diversas incursões pelo interior montanhoso do Atlas e os espaços desérticos do Sara, em busca de um património partilhado entre portugueses e marroquinos, resultante de encontros e desencontros, e com seis séculos de existência. Ao contrário do que se pensa, nem sempre foi conflituoso este contacto, antes um misto de alianças, convivências e até miscigenações. Demonstrar que é muito mais forte e visível aquilo que nos une do que aquilo que nos separa, constitui o primordial objectivo dos relatos que constam nesta “Costa da Memória”.

«– Lá para dentro não leva, não senhor. Aqui quem manda sou eu», clamava o motorista. E o pobre do chinês, saco de plástico com a merenda na mão, acautelado para uma jornada que se anunciava longa, num Português bem melhor do que as minhas promessas de Mandarim, protestava com um «– no outro sítio pode», apontando para o autocarro estacionado mesmo ao lado, no terminal rodoviário de Sete Rios.

De nada valeu o legítimo reparo. O comandante da frota 255 Lisboa-Granada mostrava-se irredutível. Dentro do seu carro – motorista que se preze chama carro ao autocarro – não entravam bagagens nem comestíveis. E ponto final. «– Nova lei» o exigia.

«– Este é o meu saco de mão. Esteja descansado, não levo nenhuma bomba», argumentava, por sua vez, com louvável humor, um passageiro europeu. “Não, és bife mas não me convences”, terá pensado o todo-poderoso homem do volante, pois também a ele lhe respondeu na negativa.

«– Nem mesmo um computador?». Era agora a minha vez de o questionar. O computador, sim. De repente, o rosto fechado do almirante-sobre-quatro-rodas mostrava alguns sinais de racionalidade, talvez devido ao meu sotaque, que, obviamente, lhe era familiar. «– E a garrafinha de água, já agora…». A garrafinha de água? Sim, claro.

E foi assim, com este exemplo de sadia convivência de culturas, que teve início a minha jornada até Ceuta, a primeira das praças-fortes a visitar na costa oeste do norte de África.

A primeira parte do trajecto cumpriu-se nas três horas previstas, com trinta minutos de paragem numa área de serviço, «– para beber um café ou comer algo», como sugerira o comodoro, aparentemente bem familiarizado com os proprietários do local. Começava a perceber o porquê da interdição dos comestíveis a bordo…

Em Faro, junto à estação de camionetas, com as bilheteiras e as casas de banho encerradas, ficámos parados três quartos de hora a levar com o “sonoro” de um karaoke das proximidades, aguardando não sei bem o quê. E nenhuma explicação nos foi dada, ocupantes de um veículo com bancos estofados com napa baratucha que fazia escorregar o corpo quando o devia manter firme. Suas excelências, os oficiais de bordo, não deram cavaco a ninguém. Embora não passassem de meros funcionários, assumiam a empresa como sua, com uma dessas prepotências de se lhe tirar o chapéu.

Dessa vez optei por um pouco habitual “não estou para me chatear”, embora registasse a conversa entabulada entre os dois. Entretinham-se a recordar as façanhas de juventude, quando, montados nas então populares V5 (bem me lembro dessas máquinas de fazer ruído!), transgrediam todas as regras e fugiam da GNR, orgulhosos da façanha.

«– Na altura não havia nada de mais rápido», concluíra um deles, visivelmente enfadado, para logo rematar, como se estivesse ali para jogar à bisca e não para levar ao seu destino duas dezenas e meia de passageiros:

«– Mas que seca! Se calhar o melhor é deixarmos o número do telemóvel e, se aparecer alguém, regressamos para o apanhar».

De Faro a Sevilha, agora com o “imediato” ao volante, foi um instante. Desembarquei nessa cidade com dois outros portugueses. Um deles, de nenhumas palavras; o outro, mais velho e aberto à conversa, deu-me a conhecer o objectivo da sua viagem. O nortenho António, mestre pedreiro, estava emigrado em Luzia, junto à fronteira com Gibraltar, onde trabalhava, na construção civil. Lembrou que também na vizinha Espanha havia portugueses a receber tratamento de escravo, tal como na Holanda. A propósito da nossa situação, desabafou:

«– Não percebo porque razão somos obrigados a aguardar tanto tempo entre um transporte e outro».

Na verdade, harmonizar horários nunca foi o forte dos portugueses. Ainda hoje se discute, na capital, medida tão primária como a conjugação de horários entre a Carris, o Metro e a TransTejo, de modo a que as pessoas possam sair de um deles e entrar num outro sem esperar tempos infindos, assistindo, por exemplo, à partida dos autocarros no exacto momento em que a mole humana se atropela para sair de um cacilheiro.

Foram três horas ao frio, parados em frente à estação Prado de San Sebastian, aguardando o primeiro autobus para Algeciras. Nada disso estava previsto. Quando comprei o bilhete disseram-me que esperaria – «quando muito», «na pior das hipóteses», «só se houver um atraso imprevisível» – uns trinta minutos, e nunca foi referida a obrigatoriedade de mudança de autocarro na capital andaluza.

Tínhamos por companhia quatro africanos, passageiros, como nós, e umas aves nocturnas bem aviadas com álcool, acabadas de chegar de um desses botellons que não deixavam ninguém dormir aos sábados à noite. Era, de facto, admirável. Os que verdadeiramente lucravam com a tão falada movida, não só tinham conseguido impingi-la aos ayuntamientos, enquanto actividade cultural, como a exportavam para Portugal, onde também estava na berra beber até cair, fazendo, entrementes, a maior algazarra possível.

Joaquim Magalhães de Castro

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