Costa da Memória

Ponta das Almedias

Diogo Gomes, protótipo do navegador-mercador, refere a descoberta de “um promontório formosíssimo entrando no mar, a que chamaram Cabo Verde”, reparando que “neste lugar começa a linha equinocial, porque os dias e as noites aí são sempre iguais no Inverno como no Verão, e aquelas gentes são na maior parte negros”. Essa península, onde, em 1444, arribara Dinis Dias, o primeiro europeu a deparar com tais virentes paragens, daí a designação, seria visitada também por Luís de Cadamosto. A respeito das ilhotas que dali se avistavam dizia: “E junto do dito cabo há umas baixas que saem ao mar talvez uma milha; e passado o dito cabo encontram-se três ilhéus pequenos, não muito distantes da terra inteiramente desabitados, e abundantes de árvores, inteiramente verdes e grandes: e tendo eu precisão de água, lançámos âncora numa das ditas ilhas, naquela que nos pareceu maior e mais fértil, e a ver se achávamos alguma fonte de água”. Cadamosto referia-se certamente a Sarpan, a maior das três “îles des Madeleines”, reserva natural conhecida pelos seus imponentes embondeiros, local privilegiado para a observação das aves marinhas. Se dali traçarmos uma linha recta em direcção oeste, iremos directos à cidade da Praia, na ilha de Santiago.

Ao percorrer a Corniche, a ondulante marginal de Dakar, deparei com um belo edifício arte nova onde estava sediado o Instituto Pasteur, “a quem a África Negra está muito reconhecida”, como indicava a placa de bronze à entrada sem qualquer outra informação adicional, tendo como vizinho, mesmo ao lado, um gigantesco “outdoor” de incentivo puro e duro ao tabagismo – apanágio dos ditos países do Terceiro Mundo. Não muito longe dali, a Embaixada da Bélgica disponibilizava um “aviso aos belgas”, em Francês e Flamengo, com o horário de funcionamento das instalações. Presume-se, a julgar por tal placa de clara inspiração “leopoldiana”, que a embaixada não servisse qualquer outro cidadão a não ser os belgas. Definitivamente mais universais, o Museu de Arte Africana, no campus da universidade Cheikh Anta Diop, e o Museu de Dakar, este último com direito a guarda de honra, um galhardo negro envergando barrete, calça e gibão carmesim com uma espingarda Mauser a tiracolo.

Em baixo, na orla costeira – regressando uma vez mais ao universo do absurdo – estranho conceito de praia pública. A edilidade, com sinalética apropriada, informava a população e visitantes que autorizava o banho e a utilização de um areal bastante sofrível, incentivando-os até a que “refresquem a vossa vida aqui!”. Porém, e aí residia o busílis, tal privilégio só mediante o pagamento de duzentos francos CFA, e sem direito a descontos para menores ou terceira idade.

A Ponta das Almedias, no extremo norte da península, seria, como o nome indica, um dos locais de pesca dos habitantes da península. Avista-se na perfeição a partir do cimo do farol da colina de Mamelles, assente no topo de um vulcão extinto. Ao fim da tarde, a presença das habituais dezenas de milhafres que em contínuo preenchem os céus de Dakar era particularmente assinalável.

Um dos aspectos anotados por Diogo Gomes foi, precisamente, a presença dessas aves “que não são como as nossas, a não ser as minhotas”.

Para Sudoeste, os contornos da costa da ilha da Goreia, principal atracção turística da capital senegalesa, durante séculos centro de tráfico de escravos de África. Do lucro daí resultante, as casas das signaras, cúmplices nesse trato, como é exemplo a casa mais conhecida como Casa dos Escravos, propriedade de Anne Colas Pépin. No seu interior, a porta da “viagem sem retorno”, à semelhança da do Forte de São Jorge da Mina, no Gana, embora o tráfico negreiro tivesse ali menor expressão.

Os primeiros europeus a visitar a ilha foram Dinis Dias e os seus homens que, relatam as crónicas, se deliciaram com uma revigorante refeição de carne de cabra e esculpiram as armas do Infante no maior dos embondeiros ali existentes, árvore que lhes causou o maior dos espantos. A partir daí, o local ficaria a ser conhecido como ilha das Cabras e, posteriormente, ilha da Palma. Após a visita de Dias, semelhantes seus, como Álvares Fernandes, Gomes Pires, Lançarote de Lagos e Álvaro de Freitas, rumando a destinos mais a sul, fizeram ali aguada.

Transposto o rio Senegal, que na altura se acreditava ser o Nilo, após meses e meses de desesperante contacto com a imensidão do mar e do “sertão branco”, ou seja, o deserto, os navegadores quinhentistas deslumbraram-se com aquela fertilidade. A sul da península de Cabo Verde confrontar-se-iam com um novo mundo. Árvores de maiores dimensões, rios mais caudalosos, aromas mais fortes, flores e frutos com aparência e sabores nunca imaginados. O homem europeu deparava-se, pela primeira vez, com a exuberância e os perigos do mundo dos trópicos. Só então começava a verdadeira aventura dos Descobrimentos Portugueses. Mas isso seria matéria para um outro relato, e para uma outra Costa da Memória.

Joaquim Magalhães de Castro

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