Os manuscritos de Chinguetti
Ao longo dos séculos XVII e XVIII reactivar-se-iam consideravelmente as caravanas no planalto de Adrar (actual Mauritânia) com os habitantes a desempenhar importantes funções. Proprietários de postos, transportadores e intermediários, trocando produtos do Norte ou produtos locais (sal, trigo, papel, cobre, tâmaras) pelo ouro, marfim, penas de avestruz e escravos. Mais tarde, já nos séculos XIX e XX, o desenvolvimento do comércio atlântico e o empreendimento colonial da África do Oeste, assim como a mudança das rotas comerciais, fariam retroceder o desenvolvimento económico de Chinguetti, que se viu limitada a um mero ponto de passagem das caravanas de sal originárias de Idjil rumo ao Sul e Leste do País.
Hoje, Chinguetti é um simples destino turístico com alguns albergues e lojas de artesanato para quem aprecia o deserto e os mistérios que ele encerra, e também para os entusiastas da arquitectura local, caracterizada pelas típicas paredes de tijolos de argila sustentadas por tectos planos e portas de madeira de acácia, árvore que há muito deixou de crescer nas redondezas, pois o deserto continua a avançar inexoravelmente. Um dia, Chinguetti voltará a desaparecer sob um manto de areia alaranjada. Apesar da roupa colorida pendurada nos muros das casas, muitas delas há muito foram abandonadas. Basta percorrermos uma das vielas labirínticas que separam o casario para depararmos com medidores da altura da areia, à semelhança dos medidores de altura da água em cidades normalmente afectadas pelo aumento do caudal das águas devido às chuvas. O comércio é residual e traduz-se em lojas minúsculas, como a “Felicidade das Damas”, do senhor Makhmout, que promete “esmagar os preços de artesanato mauritano e africano”, a loja de panos e pinturas Chez Leclerc, “mais barata do que o gratuito” e a galeria “Ali Baba mas não os 40 ladrões”.
Placas de metal estrategicamente posicionadas dão-nos conta de projectos de reabilitação de alguns edifícios financiados pela União Europeia e pela Fundação Al Ahmed Mahmoud, também responsável pela manutenção de um museu-biblioteca com o seguinte lema: “O saber é a única riqueza que podemos distribuir sem risco de nos arruinarmos”. Ora aí está. Alguém que não pode ser acusado de sonegar informação. Pois isso de museus, nessa geografia, era apenas camuflagem para o único negócio rentável, ou seja, as afamadas bibliotecas familiares, razão primordial de uma visita à cidade.
Existiam então em Chinguetti 963 livros repartidas por seis famílias, mas tempos houve em que eram trinta os agregados guardiões, mas isso foi antes das constantes secas, a partir da década de 1950, que obrigaram muita gente a partir definitivamente, levando o único tesouro que possuíam. Se juntarmos o património bibliográfico de Chinguetti ao de Ouadane, com 140 títulos, teremos um total de 1103 livros. Quanto aos temas, podem ser organizados da seguinte forma: teologia, linguística, assuntos alcorânicos, exegese, mística, lógica, assuntos variados, matemática, história, astronomia e medicina.
Placas de metal afixadas nos muros identificavam as reputadas bibliotecas familiares, havendo a destacar a livraria de Mahomed Hobbat, a maior e mais bem preservada, pois mantinha os preciosos manuscritos devidamente acondicionados. Talvez porque me interessasse saber qual o estado das restantes raridades, algumas datadas do século IX, optei por visitar uma biblioteca menor, a da família de Moulaye Moahmad Ould Ahmed Cherif, com o número de registo 6097933.
O actual guardião, um homem de trinta e pouco anos, conduziu-me ao tesouro familiar, guardado em três pequenas salas escuras, todas elas com janelas e portas azuis encerradas com engenhosos ferrolhos de madeira.
«– Todos os manuscritos estão envoltos em pele de gazela e de cabra, que os protegem», dizia Moulaye júnior, enquanto expunha uns vinte tomos em cima de uma mesa protegida por um tapete.
Os livros encontravam-se num estado lastimável. Comidos pela traça, manchados e com as folhas quebradas. Não durariam muitos mais anos, sobretudo se fossem folheados frequentemente frente aos futuros visitantes, como era de prever. Alguns dos manuscritos continham elaboradas iluminuras no início dos capítulos e um deles cabia em metade da palma da minha mão.
No final, como constava do programa, a mulher preparou-me um chá num fogão a gás, enquanto o anfitrião ia fumando cigarro atrás de cigarro, certamente pensando no valor que lhe iria atribuir pelo privilégio de ver e fotografar tudo aquilo que me mostrara.
Em vão procurei Mahomed, dono do Auberge Eden, um entendido em assuntos históricos que me fora recomendado por Arnaud, o cineasta francês. Não tive o prazer de o conhecer, mas Moulaye pôde informar-me que «o arquivo do exército francês em Atar» estava a cargo de um tal senhor Meunier, e «a biblioteca da igreja local» ao cuidado «do padre Marc».
«– Irá encontrar aí muita informação. Aí, e na biblioteca da igreja de Nouakhcoot, frente à embaixada de França», acrescentou.
Além das bibliotecas familiares, Chinguetti era ainda conhecida pelas suas “cooperativas de trabalho e salvaguarda da cultura mourisca”, também elas financiadas por fundos europeus e exclusivamente destinadas às mulheres, que nos teares davam largas à criatividade. À entrada de uma dessas cooperativas pude ler, em Francês, o seguinte: “Cooperativa feminina local, mais barata do que em todos os outros locais”.
Joaquim Magalhães de Castro