Arguim num mar de areia
As avarias naquela região são frequentes, mas para isso estão os outros estrangeiros que dão sempre uma mãozinha. É grande a solidariedade entre eles, cientes de que podem ser as próximas vítimas.
No posto onde nos abastecemos com combustível havia um poço e meia dúzia de cabras num redil, os únicos sinais de vida num perímetro de muitas dezenas de quilómetros. Rodeava-nos um deserto alaranjado preenchido com bonitas dunas onde nos apetecia rebolar. E, precisamente para darmos largas a essa nossa vontade, fez-se uma paragem propositada, pois não havia horários a cumprir. Bastava que chegássemos a Nouakchott ao anoitecer. Jaspard e amigos, entre os quais o filho, viviam a sua “aventura na areia”. E eu também.
O mauritano que viajava connosco (também ele apanhara boleia no Baie du Levrier) tinha como destino o Parque Natural de Arguim. Apeou-se, por isso, num posto de gasolina assinalado por gigantescas antenas de telemóvel e uns barracões de madeira e zinco, a meio caminho entre Nouadhibou e Nouakchott. Dali partia um trilho em direcção oeste, apenas acessível a quem conhecia bem a região, pois uma tempestade de areia podia apagá-lo a qualquer momento.
Toda aquela área, conhecida como banco de Arguim, generosíssima em peixe e marisco, porventura uma das zonas mais ricas do mundo nesse domínio, era, à época, um dos pontos de entrada da cocaína originária da outra banda do Atlântico. Tendo em conta que as viaturas conduzidos pelos filhos da terra, por regra, escapavam ao controlo rodoviário, dava para imaginar o tráfico ali existente.
Senti-me tentado a interromper a viagem nesse local. Porém, como era pouco provável conseguir outro tipo de transporte, joguei pelo seguro mantendo-me fiel à boleia assegurada. Arguim podia esperar.
Pequena ilha a doze quilómetros da costa, separada por canais arenosos que se movem com a corrente, Arguim integra uma vasta zona, classificada património natural, sobretudo devido à invernada de diversos tipos de aves aquáticas. Fundada pelos portugueses em 1445, a feitoria de Arguim começou por negociar com penas de avestruz, caçadas na região e bastante procuradas na Europa. O comércio seria de tal monta que conduziria à extinção da espécie nessa região. Também a goma-arábica e as peles de focas passaram a fazer parte do tráfico, assim como os cereais, o marfim, a noz de cola e os tecidos de luxo, vindos do Sul, trocados por sal, armamento, frutos secos e utensílios, originários do Norte.
As avestruzes, outrora abundantes, desapareceram também do planalto do Adrar, mais para o interior, assim como os antílopes, as panteras, os leões, os elefantes (que ali demandavam na época das chuvas), as lebres, as hienas e os mais diversos tipos de gazelas.
A verdade é que a chegada dos portugueses provocaria a renovação do comércio das caravanas. Ouro e sal, dois dos produtos de base do trato transariano, passavam de Arguim a Oaudane e daí a Chinguetti. Subsistia, desde tempos imemoriais, o “mito realidade” das minas de Bilad al-Sudan, onde o “ouro surgia na areia após as chuvas” e os animais defendiam as entradas das mesmas “reclamando sacrifícios humanos”.
Em média, entre uma a três toneladas de ouro eram transportadas anualmente para os portos do Mediterrâneo, ficando Arguim com apenas vinte ou trinta quilogramas desse total.
O sal servia de moeda, cambiado pelo seu valor em ouro e seria um instrumento de troca privilegiado até ao século XIX, destronado mais tarde pelas “peças da Guiné”, fruto do comércio marítimo. As salinas de Idjil, ao largo da costa do Saara, eram já mencionadas no manuscrito de Valentim Fernandes.
Houve uma quase colonização portuguesa do Trab el Bidhane, como designavam os mouros a região onde viviam por oposição ao Trab Assoudane, que engloba a região de Azaouade, no actual Mali, que resultaria do estabelecimento no interior depois de estabelecimento de feitorias desde o Cabo Não até ao Cabo Branco.
Chegamos ao anoitecer a Nouakchott, a poeirenta capital da Mauritânia, recentemente abalada por um golpe de bastidores que afastara do poder o general Maaouya Ould Daddah, no cargo presidencial desde 1992. Dirigimo-nos de imediato para o albergue Menata, um dos mais populares alojamentos da cidade, onde deparei com um compatriota de Braga, preocupadíssimo, pois «não havia maneira de conseguir vender o jipe» que levara de Portugal para poder regressar à Cidade dos Arcebispos. Visivelmente desgostoso pelo insucesso da sua empresa, desabafava:
«– Esta gente não tem princípios nem palavra. E comem com as mãos!».
Na manhã seguinte, na companhia da Valerie, uma atraente francesa, dirigi-me ao mercado da cidade. Pasmei com o tamanho dos peixes – gigantescos – de goela aberta, ensanguentados, em cima das bancas de cimento. Habituado a vê-los em postas ou em filetes, esquecera a sua dimensão real, devidamente assinalada nas gravuras que acompanhavam as descrições dos cronistas dos Descobrimentos. Em contraste, o colorido dos panos enrolados no corpo das vendedeiras e dos barcos alinhados na praia. A pescaria era toda ela artesanal. Estranhei a presença ali de gente de Angola e Cabo Verde, embora, aparentemente, isso fosse comum. Um deles, o Zeca Osório, munido de megafone e malinha-mealheiro a tiracolo, era o protótipo local do comprador de pescado.
«– Este é o meu trabalho. Compro peixe e logo o vendo», dizia.
Decoravam a frota dos barcos de madeira nomes como Ama Sene ou Mouretala e bandeiras de vários países hasteadas à proa. Os pescadores posavam com os peixes capturados e comunicavam efusivamente, certamente atraídos pelos cabelos louros da francesa, enquanto os pacientes jumentos puxavam carroças repletas de pescado deixando traços na areia iluminada por um sol rasante prestes a despedir-se de mais um dia luminoso.
Joaquim Magalhães de Castro