Escravos na Mauritânia
A pobreza, o caos e a poeira eram as principais características dessa cidade. Ao entrar em Nouadhibou pareceu-me estar num imenso corredor asfaltado com garagens de um lado e do outro, e, nos intervalos, carcaças e carcaças de automóveis, uns em funcionamento, outros simplesmente deixados a apodrecer. Isso, e muitas cabras entretidas a comer plásticos e outras coisas pouco mais nutritivas. Enfim, a imagem que todos temos de África é bem pior ao vivo do que observada na televisão.
Ao longo dessa rua, pomposamente denominada Boulevard Median, foram ficando os passageiros. Depois, Senaga, negro retinto, como já se disse, conduziu-me ao caótico mercado municipal (que saudade dos bonitos souks marroquinos!) onde, no estaminé de um cambista local, um mouro de baixa estatura, pude trocar dinheiro «com o melhor dos câmbios».
Recordei o comentário de um amigo das lides jornalísticas que por ali passara anos antes: «Na Mauritânia vivem uns tipos pequeninos de etnia árabe que mandam nuns negros de grande estatura». E eram negros do tamanho de jogadores de basquetebol, que se balançavam quando caminhavam, por entre as cabras, a sucata e o lixo que enchia as ruas.
Neste país nunca se indica o preço das coisas, apenas se diz: “E você, quanto quer pagar por isto?”. Comerciantes natos, os mauritanos de extracção berbere e árabe têm uma forma de mexer as mãos que é já negro-africana. Ali logo se compreende o sentido da palavra salamaleque, aplicável aos diversos cumprimentos que os mauritanos trocam entre si quando se encontram – como é que vai a mulher? E os filhos? E o camelo? E as ovelhas? – e que, na sua versão mais radical, digna do livro Guinness de recordes, chegam a prolongar-se por uns quinzes minutos de trocas de cortesias, antes de se ir direito ao assunto.
Concluído o câmbio, Senaga deixou-me ficar no “Aubergue Baie du Levrier”, a única referência que trazia em termos de alojamento. E se até então fora taxista, Senaga dispunha-se a levar-me a visitar as redondezas «como amigo», ou seja, gratuitamente. Na altura, estranhei a oferta, mas em breve dar-me-ia conta da outra faceta dos mauritanos, capazes de grandes actos de generosidade. No entanto, só se simpatizarem com o infiel.
Estava no albergue um jovem casal. Ele, holandês. Ela, francesa. Ele, o Abraham, rapaz viajado, falou-me da presença portuguesa no Suriname e numa espécie de crioulo com palavras portuguesas, o “papiamento”, que também se fala nas ilhas de Curação e de Aruba. (Parece haver uma clara analogia entre o “papiaçam di Macau”.) Abraham falou-me dos escravos que fugiram das plantações e de algumas palavras em crioulo, que prontamente escreveu no meu caderno: Rio Grande. Pikin Rio. Futunakba.
E por falar em escravos… O proprietário do albergue, um mouro chamado Ali, tratava os empregados, rapazes do Mali e do Burkina Faso, comportando-se como um verdadeiro negreiro.
A verdade é que a maioria dos estrangeiros não nutre grande simpatia pelos mauritanos. Visitam o País atraídos pelo deserto e não pelas pessoas. No entanto, quando se conhece melhor alguém desta empobrecida nação islâmica, depressa se desvanece a primeira impressão, que é quase sempre negativa. Os mauritanos são pessoas directas, e tão directos vão ao assunto que chegam a ser indelicados. A sua relação com os estrangeiros é essencialmente mercantil e, pontualmente, amistosa. Do tipo: “Se nada consigo de ti, dou-te o que pretendes”. Gostemos ou não deles, indiferentes a eles é difícil ficar.
Entre os próprios, as coisas passam-se de um modo muito peculiar, graças a uma sociedade nada flexível. O sistema de castas na Mauritânia é de tal modo estratificado que limita qualquer tentativa – e os cartazes nesse sentido vêem-se um pouco por todo o lado – de unificar a nação. A cor da pele é, neste caso, um factor preponderante na estratificação do tecido social. No topo da escala estão os bidan, mauritanos de pele clara que descendem dos guerreiros e dos letrados. Seguem-se os designados “comuns”, de pele mais escura. No fundo da tabela estão os mauritanos haratin, negros, que desempenham funções artesanais, trabalho braçal ou simplesmente são escravos dos bidan, sem quaisquer direitos. Há quem nasça senhor – os bidan – e há quem nasça servo – os haratin. E dessa herdada condição não há escapatória.
Em 1980 existiam ainda na Mauritânia cem mil escravos haratin, o que levou à abolição oficial da escravatura. Mas apesar das intenções essa prática continuou a existir (e existe ainda), sobretudo no planalto interior do Adrar, o mais visitado pelos turistas. Muitos dos haratin estão de tal modo ligados às famílias bidan que, caso partissem, ficariam sem quaisquer meios de subsistência que lhes permitissem sobreviver.
Questionado acerca da razão pela qual não regressava ao seu país natal, o Mali, Jamal Soliko, empregado no “Baie du Levrier”, replicou:
«– Aqui tenho alimentação garantida, no meu país nem isso consigo».
Por essa razão, tencionava seguir com a sua vida de «alimentado e alojado» mas sem qualquer salário. Tão-só algumas ougyas diárias, «para o tabaco e assim», oferecidas pelo patrão Ali e alguns dos estrangeiros que no albergue pernoitavam.
Enquanto conversávamos, um canal televisivo senegalês transmitia telenovelas brasileiras com actores negros a contracenam com os brancos, o que não é muito normal. Provavelmente telenovelas escolhidas a dedo, para o mercado africano.
Joaquim Magalhães de Castro