A última colónia de África
A Frente Polisário, apoiada pela Argélia, continuava (como desde sempre) a reclamar a independência do território do Saara Ocidental, exigindo, para isso, um referendo o quanto antes. Servia-lhes decerto de reconforto o facto de a Comissão de Descolonização da ONU reconhecer “o direito inalienável de todos os povos à livre determinação” e de alguns grupos de pressão no estrangeiro, sobretudo em Espanha e na Itália, pugnarem pelo direito dos sarauís à independência plena da sua nação. Entretanto, todos os esforços eram poucos para fazer ouvir no exterior um assunto que nunca chegara a estar na agenda internacional. Talvez por isso a presença de um qualquer estrangeiro de passagem, minimamente interessado pela matéria, era de imediato encarada como um trunfo, como uma carta enviada ao mundo.
«– Sabemos que não estamos sós», dizia-me Amgroud, professor no desemprego, abordando um assunto tabu.
Mesmo ao lado do café onde conversávamos havia um enorme aquartelamento militar e algumas das pessoas que entravam e saíam do hotel El Kods, ou dos cafés e lojas nas imediações, podiam ser agentes da polícia. A hipótese, porém, não quebrava o ímpeto de Amgroud, que combinou comigo uma conversa ao fim da tarde «com outros professores» – além de Said, que o acompanhava mas que se revelara homem de poucas palavras.
Aceitei, mas só depois do entardecer, pois queria regressar à costa para melhor observar a faina dos pescadores.
Dessa vez, a proximidade foi maior e houve até quem insistisse em ser fotografado, pedindo-me que enviasse as imagens depois, já que alguns tinham endereços electrónicos.
É longo o historial de resistência contra os espanhóis nesta latitude. Desde 1572, e a partir das Canárias, faziam-se incursões no interior, seguindo o curso de água não permanente de Saguia el-Hmara, contra os sultões marroquinos, que sempre almejaram integrar a região no “grande Marrocos”. Dois tratados – o de Marraquexe, em 1727, e o de Meknes, em 1799 – foram assinados entre a Coroa espanhola e o Sultanato marroquino. A Conferência de Berlim de 1884 acabaria por atribuir à Espanha este quinhão da África. Em 1934 já todo o Saara Ocidental se encontrava na posse dos espanhóis.
No início da década de 70 os sarauís oficializariam a sua revolta contra o poder colonial constituindo a Frente Popular para a Libertação de Saguia el-Hmara e o Rio del Oro (Polisário). Com Franco moribundo, a presença espanhola vivia o seu canto do cisne, mostrando-se disposta até a transferir o poder em troca de concessões na exploração dos fosfatos e das pescas. Porém, ao mesmo tempo, no maior dos segredos, assinava um acordo para que a colónia fosse repartida entre Marrocos e a Mauritânia. A ameaça veio do Norte e do Sul, vendo-se a Polisário obrigada a enfrentar duas frentes de batalha.
No calor da refrega, nos finais da década de 70, antes da construção de um muro (iniciativa de Rabat) de mil e quatrocentos quilómetros que impedia a guerrilha de aceder ao mar, a Polisário fez incursões na costa, chegando a atacar barcos de pesca espanhóis e a fazer reféns, a última das ocasiões seis meses antes do partido no poder em Madrid, a União do Centro Democrático, ter reconhecido oficialmente a organização sarauí. Estávamos em 1978. O conflito passou a centrar-se em Marrocos. Só uma década depois as duas partes chegaram a um acordo para analisar o plano de paz, proposto pela ONU e que ainda hoje se discute. Entretanto, em muitos dos atlas e enciclopédias o Saara Ocidental é já apresentado como um país independente.
Ao fim da tarde encontrei-me com o pouco falador Said, mas o professor Amgroud, esse, não compareceu. Ocorreu-me, por momentos, que pudessem ambos ser polícias à paisana, desses que abordavam estrangeiros apenas para se inteirarem das suas reais intenções no Saara Ocidental. Felizmente não era o caso.
Said convidou-me para jantar em sua casa, onde vivia com a mulher (sua prima) e com a filha de ano e meio, que, pelos vistos, sofrera os efeitos dessa consanguinidade: a criança estava paraplégica. A hospitalidade da jovem família depressa desvaneceria qualquer resquício de desconfiança. Mesmo que sejam informadores ou colonos marroquinos, não deixam de ser uma simpatia, pensei.
Antes e depois do delicioso tagine de borrego, bebemos chá ao modo sarauí, muito açucarado e bem espumoso. Todo um ritual envolve a preparação desta bebida e é praxe obrigatória ingerir, pelo menos, três copinhos. Confesso que prefiro o estilo oriental de ir bebendo chávena atrás de chávena. E nunca, jamais, em tempo algum, com açúcar. Said, que se interessava pela história, sobretudo pela ligação que esta tem com a literatura, alertou-me para a existência de algumas «casernas de soldados portugueses» situadas cinquenta e cinco quilómetros a sul de Essaouira, de onde era originário.
«– Não ficam muito longe das povoações Tafelny, Smimoy e Elmar», especificava.
Anotei os nomes no meu caderno de apontamentos, mas não os consegui identificar no mapa que trazia comigo. Said dizia-me ainda que bartikz era o nome dado pelos velhos da sua terra aos portugueses, mencionando depois uma associação que visava preservar a cultura berbere – a Tamaynut. Depois, escreveu o meu nome em alfabeto berbere, que, pelos vistos, nos últimos anos fora “reabilitado”, sendo inclusivamente ensinado às crianças nas escolas oficiais do País.
Joaquim Magalhães de Castro