Costa da Memória

Lembranças de Geraldo Sem Pavor

Onde menos se esperava, avistavam-se vastas áreas desérticas, lavradas a charrua ou a tractor, aguardando o resultado da sementeira, assegurada pelos vários projectos de irrigação em curso. Outros quinhões de terra estavam a ser preparados, como se podia deduzir pela presença de topógrafos em frente de teodolitos, junto às caixas de água, fazendo cálculos e medições. Concluído o serviço, e enquanto esperavam, dormitavam, anestesiados pelo intenso calor. Ao fim de umas horas, o jipe da empresa iria buscá-los.

O deserto era agora bem mais bonito. E, inseparáveis dele, erguendo-se como titãs de ferro, altíssimas e potentes antenas certificavam rede aos telemóveis dos passageiros que não paravam de tocar. Muito tinha para dizer aquela gente! Minutos atrás de minutos de constante algaraviada, literalmente.

A algumas centenas de metros do rio Dra, avistava-se um monte no qual se adivinhavam as ruínas da alcáçova Aet Hassine, ligado à estrada nacional por um trilho por onde seguia um velho, alforge ao ombro, montado num jumento. Belíssima imagem, que de imediato me transportou para um canto perdido da minha tão querida Ásia Central.

Se dali seguíssemos em direcção à costa, depararíamos com uma povoação chamada Aoreora, talvez corruptela de “aurora”. Dizia-me Ethuane, conhecedor da região, que, da aldeia, nada restava, embora existisse o esqueleto de um navio enterrado na areia, demudado, devido à acumulação de água, numa bizarra e lodosa piscina.

Em Dra, séculos antes da epopeia marítima, encontraria a morte Geraldo Geraldes, o Sem Pavor – para uns, herói; para outros, traidor. Inclino-me mais para a primeira hipótese, pois esse aventureiro, por razões que a história não conseguiu ainda apurar, encontrava-se em território inimigo, mais propriamente na região de Suz (actual Agadir), na companhia de trezentos milicianos cristãos, corria a década de 1160. Sabe-se que enviou um emissário a D. Afonso Henriques, aconselhando-o a conquistar Marrocos por mar, podendo contar, para isso, com o apoio dele e dos seus homens. Infelizmente, o mensageiro seria interceptado e o conteúdo da missiva revelado. O astuto califa, descoberta a jogada do português, pediu ao xarife de Dra que o convocasse à sua terra, pois aí estaria mais bem acomodado. Geraldes responderia de pronto à chamada, e, acompanhado pelos seus cavaleiros, rumou a Dra, onde o aguardava uma cilada que a todos dizimou, no ano de 1169.

Conhecida a nível local como Al-Hamra, “a vermelha”, a cidade de Tan-Tan padecia de inusitada presença militar, perfeitamente explicável pela proximidade do Saara Ocidental. Em 1979, três anos após a ocupação deste território pelo exército marroquino, guerrilheiros da Frente Polisário atacaram a cidade por diversas ocasiões, fazendo dela o ponto mais setentrional da sua luta armada.

Como a minha batalha era outra, aproveitei a paragem junto aos escritórios da Supratours para demonstrar indignação face à insuportável lentidão a que o motorista, verdadeiro ditador, nos estava a sujeitar.

Estávamos agora fora dos limites de Tamrhakht, a Tamaraque das crónicas portuguesas. Também ali se negociava forte e feio, como o comprova Afonso Rodrigues, feitor do Castelo de Santa Cruz de Agadir, em carta redigida ao rei em 1513: “E por aqui não haver soma de bordates, se foram uns mercadores, que vinham para este castelo, a Tamaraque, onde estavam dois mercadores de Cadiz”. O feitor sugeria até que o monarca encontrasse uma solução para se desembaraçar “dos mercadores de Cadiz”, pois se eles não fossem ali comerciar “tudo viria a esta feitoria (de Agadir)”.

Este “contrabando de guerra”, como lhe chamou David Lopes, que tinha como protagonistas os mercadores franceses e castelhanos, continuou a fazer-nos dano. Beneficiava com ele o xarife, recebendo as armas com as quais nos haveria de combater e vencer. Teracuco, Tamaraque e, numa fase posterior, Tafetana, eram os portos pelos quais transitava todo esse contrabando estrangeiro.

Também Heitor Gonçalves, antigo feitor de Safim, escreve a D. Manuel, informando-o da situação e dando-lhe conta de um ataque francês a um barco português que resultou na decapitação de toda a tripulação, “senão a um neto do mestre Rodrigo que por ser criança o levaram a França”. E especifica: “Eram duas naus; esta é da Rochela e o capitão chama-se o Barbate, de alcunha”.

Eram já recordações a aldeia piscatória de Imessouane, internacionalizado palco de competições de surf, e Taghazout, com abundância de apartamentos para alugar, onde – recordo-me bem – eram mais os praticantes na praia do que nas ondas, pois o mar não estava lá muito de feição. Alguns barcos de pesca e um bloco de apartamentos em construção, a pouco mais do que isso se resumia a aldeia de Tamri, antecedendo o cabo Rhir e o seu farol. A vista para sul impressionava: areais e baías com óptima ondulação. E os surfistas não se faziam rogados. Lá estavam, junto das famílias de marroquinos merendando à borda dos penhascos ou na areia dura da praia. As auto-caravanas nas arribas com as pranchas nos tejadilhos revelavam uma comunidade em permanência na zona. O local é perfeito, não fosse o lixo que continuava a marcar presença. Odiosos sacos de plástico pretos presos às espinhosas argânias, que ali, finda a sua circunscrição botânica, são já praticamente arbustos.

Joaquim Magalhães de Castro

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