Costa da Memória

A Skala e o Castelo Real

Em 1628, após a partida dos portugueses, era ainda uma pequena cidade, mas em breve cresceria substancialmente, devido à actividade da comunidade judaica, os ditos “negociantes do rei”, e graças ao papel de Ben Abdellah, que reforçaria a sua função de praça-forte. O sultão chamou-lhe Souira (a pequena fortaleza) e convidou o arquitecto francês Théodore Cornut para desenhar uma nova urbe. Com o acrescento de algumas letras ao nome, a cidade passaria a designar-se Essaouira – “a bem desenhada”, em Árabe.

Apesar das alterações, a verdade é que toda a zona portuária, a denominada Skala do Porto, inspira-se na traça original do Castelo Real. Composta por duas baterias de defesa, está dotada de dezenas de soberbos canhões em bronze, maioritariamente espanhóis, resultado de um barco que naufragou junto à costa. Vi ali várias peças de artilharia portuguesas anteriores ao período de dominação dos Filipes.

Admite-se que a torre quadrada à entrada do porto seria o castelo original, restaurado após a sua destruição, em 1510, pelas tribos vizinhas. Também a torre à esquerda foi construída seguindo esse modelo. Ambas se assemelham à Torre de Belém, ou, melhor ainda, à torre de menagem do Castelo de Beja. Com o intuito de ligar a cidade ao porto, foi erguida, em 1806, entre ambas as torres, a Porta da Marina, num estilo neoclássico com duas colunas e um frontão triangular clássico como os que vemos em construções coloniais um pouco por todo o mundo. Estilo divulgado pelos portugueses e posteriormente adoptado pelos holandeses, franceses e ingleses.

Foi na torre da Skala do Porto que Orson Wells filmou algumas das cenas do filme “Othello”, vencedor da Palma de Ouro no festival de Cannes de 1952.

Ao fundo do beco Ibn Zon, junto à viela que acompanha a Skala, deparei com a ruína de uma alegada “igreja portuguesa”. No topo da porta do edifício ao lado, que os habitantes locais garantem ser “a casa onde nasceu o presidente português”, sem me saberem dizer qual, havia uma placa em muito mau estado onde se podia ler o seguinte: “Local do consulado português no século XIX”.

Ao cair da tarde, aproveitei para visitar as muralhas e as torres da Skala, onde os pintores da região expõem as suas obras na esperança que os turistas as comprem. Avistada daquele local, banhada pela luz vermelha do sol poente, Mogador redobrava a sua beleza. Num dos inúmeros terraços, reparei numa estaca encimada com um pedaço de madeira em forma de peixe. Atraídas pelo engodo, centenas de gaivotas esvoaçavam para ali, completamente endoidecidas. Alguém certamente tiraria prazer dessa pequena crueldade, pois não vi utilidade para tão despropositado artifício.

Devido às escavações arqueológicas em curso, coordenadas por uma equipa de técnicos alemães, não pude visitar o Castelo do Mar, essa, sim, fortificação inteiramente portuguesa, edificada na rochosa ilha de Mogador, a uma centena de metros da costa.

Para sul, estendem-se quilómetros de areal a perder de vista, um espaço outrora muito solicitado por figuras gradas da cultura norte-americana. Foi o caso do guitarrista Jimi Hendrix, que ali viveu uma temporada na década de 1970, talvez em busca de inspiração.

Nas redondezas, vários edifícios públicos e uma igreja, caiados de branco, com janelas e portas ornadas a granito, lembravam a arquitectura do Estado Novo, ainda hoje presente em tribunais, escolas e câmaras municipais do nosso país.

A presença do idioma francês era uma constante em todo o Marrocos e só tinha concorrência à altura no norte do País, onde competia com o Castelhano, quase de igual para igual. Nas estações ferroviárias os anúncios eram feitos em Francês, e só depois em Árabe. O canal 2 da televisão marroquina era parcialmente transmitida na língua de Voltaire e, no canal 1, o telejornal em horário nobre precedia o “Le Journal”, em horário mais nobre ainda. Jornais, revistas e publicações em Francês eram quase tantas como as que se publicavam em Árabe. Nas ruas, repartições públicas e nas lojas, o Francês lá estava, lado a lado com o Árabe ou até em representação exclusiva. Os cafés e as esplanadas também eram franceses, assim como as baguetes, os croissants e muitas das actividades culturais, simpósios e programas de cooperação.

Quanto a nós, não se podia dizer que estivéssemos parados. Li na imprensa local que a AMPA (Association Maroco-Portugaise des Affaires) organizara a sexta edição da Portugal Cup nos “greens” do Royal Golf Dar Essalam, em Rabat, o que, na opinião do embaixador português, servira para «cimentar os laços de amizade entre os dois países». Também nos desportos náuticos Portugal pontuava. O jovem Lourenço Silvano vencera o Campeonato Europeu de bodyboard que tivera lugar nos areais de Imourane, a uns dezoito quilómetros de Agadir. No sector feminino fora uma espanhola quem levara os louros, tendo ficado em terceiro lugar uma portuguesa que o Liberation, diário marroquino, não referia o nome. Organizado pela Associação Europeia de Surf em colaboração com a Federação Real Marroquina (é conhecida a paixão pelo surf do monarca Mohammed VI), o evento contara com participação de 82 praticantes da modalidade originários da Espanha, Portugal, Alemanha, França, Brasil e Marrocos.

Finalmente, em nota de rodapé do Le Matin, dava-se conhecimento, na secção “Detante” – dominada por notícias da publicação de livros de autores francófonos, nascidos ou a residir em Marrocos; da actuação do “ensemble” de música de câmara francês “Você”; ou ainda da exposição de 200 fotos a preto e branco sobre Casablanca, cidade onde nasceu o fotógrafo Yves Jeanmougin – de “um espectáculo de fado” com Maria do Carmo Seabra e Francisco Salvão Barreto no centro cultural de L’Agdal, em Casablanca, que contava com o apoio de Centro Cultural Português “para assinalar o fim da presidência portuguesa da União Europeia em Marrocos”. Recordava o redactor da minúscula nota, que o fado deriva “do termo latino fatum que quer dizer destino”, esquecendo-se de informar o leitor que essa é uma forma musical genuína, e não uma peça de teatro ou um número de circo.

Joaquim Magalhães de Castro

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