O castelo do mar
Lá fora, continuavam presentes os campos de trigo, a perder de vista, e, quebrando a monotonia, conjuntos de silos que mais pareciam, assim, inseridos na paisagem, arranha-céus.
Já quase no final da viagem, Habib acabaria por confessar-me o porquê da deslocação a Safim. Ia visitar a namorada, infringindo uma lei que, em Marrocos, interdita qualquer tipo de intimidade entre homens e mulheres que não sejam oficialmente casados.
«– A lei não o permite, mas a gente sabe como contorná-la», comentava ele, com um sorriso vitorioso, sussurrando: «– Tenho um cantinho que nos serve de refúgio».
Iluminado por um sol que já tardava, Safim, considerada a mais bela das praças-fortes portuguesas, transbordava simpatia e acolhimento. Desde o terminal de camionetas até ao porto, fui acompanhado por um sujeito que, desinteressadamente, me foi dando indicações. Confirmá-las-ia no decorrer dos três dias passados na cidade: os habitantes de Safim são os mais hospitaleiros e os menos interesseiros de todos os marroquinos.
«– Esta aqui é uma igreja vossa», dizia o homem, apontando para um templo. Não era, certamente, mas confirmei com um aceno de cabeça.
Mathew Sanders, engenheiro químico recentemente aposentado, conhecia Safim há já vários anos.
«– É a minha décima quinta visita», confidenciou. Pelos vistos, à décima quinta decidira comprar casa, pois apreciava o sossego de Safim, longe do bulício de Marraquexe e Essaouria. Mas, por enquanto, Mathew ocupava o único quarto disponível no terraço do hotel Magestic, onde gostaria de ter ficado. «– Sou hóspede antigo», dizia, em jeito de desculpa.
O inglês comprara uma bicicleta para as deslocações diárias, e admitiu ter como passatempos de eleição o ténis e «o esqui nos Alpes franceses». Ao longo das suas estadas em Safim, que se prolongavam por várias semanas, aprendeu a misturar-se com os locais. O certo é que, com alguma discrição, um europeu podia passar despercebido num mercado ou numa ruela mais movimentada.
«– Mas não por muito tempo», replicava o inglês. «– A intuição dos marroquinos depressa desvenda a nossa verdadeira identidade».
Na parte que me toca, os poucos dias despendidos no Magestic foram suficientes para estabelecer laços de afinidade com o vendedor de jornais da rua em frente. Certa manhã, chamou-me para me mostrar a capa de um diário do Qatar, dando destaque a uma entrevista a Luís Filipe Scolari, que colocava a hipótese de vir a treinar a selecção daquele país. Isso assegurava o ardina, fazendo-me o resumo do que lá vinha escrito em Árabe. Também me familiarizei com os donos do café onde de manhã ia beber o galão e à noite me entretinha a ver jogos de futebol com os homens do bairro. Desafio peculiar, o disputado pelo Futebol Clube do Porto na Liga dos Campeões contra uma equipa francesa (não me lembro qual), que teve em todos os marroquinos presentes fervorosos adeptos portistas. A sala encheu e todos vibraram com as jogadas do campeão português. Isto, apesar de Tarik Sikitioui, o marroquino ao serviço dos dragões, não ter feito parte dos planos de Jesualdo Ferreira para essa noite.
Valeria a pena fazer um trabalho fotográfico sobre os cafés de Marrocos. Os retratos dos reis Hassan II e Mohammed V, expostos nas paredes, são o denominador comum a todos eles. Habitualmente são apresentados a beber café ou chá, servidos num copo ou numa chávena de prata, claro. Se é um restaurante, os mesmos são retratados a comer. Já num hotel, a pose terá de ser mais digna, mais própria de um monarca. Surgem, nesse caso, vestidos de branco imaculado em posição de prece, com o terço islâmico e o Alcorão nas mãos; ou então em foto de família com filhos, irmãos, irmãs e esposas.
A partir do terraço do Magestic desfruta-se uma excelente vista para a torre manuelina do Castelo do Mar, a uns duzentos metros de uma das mais movimentadas zonas portuárias do País. Dali sai grande parte do peixe que Marrocos exporta. Mesmo em frente ao castelo havia uma linha ferroviária por onde, várias vezes ao dia, passava uma velha locomotiva puxando vagões com fosfatos. Do complexo industrial – anunciado por torres cónicas expelindo nuvens de fumo branco e denso, na parte sul da cidade – até ao porto, e vice-versa.
O Castelo do Mar guarda no seu pátio interior uma impressionante colecção de trinta peças de artilharia dos séculos XVI e XVII, algumas com inscrições portuguesas. Sob o arco da Porta do Mar, onde outrora se fazia a descarga de passageiros e mercadorias, directamente para o castelo, dois homens embriagavam-se com cerveja, longe dos olhares indiscretos e certamente reprovadores.
O que mais me impressionou no monumento foi a beleza das janelas manuelinas. Do mesmo estilo são as esferas armilares e os dois anjos (similares aos da fachada do extinto Leal Senado, em Macau) ladeando o escudo nacional, gravados na parte norte das muralhas merínidas que rodeiam a cidade num perímetro de vários quilómetros. Um excelente exemplo da intervenção portuguesa operada nas muralhas já existentes. A estrutura militar acolhia um afamado museu de cerâmica, pois as coloridas peças de olaria de Safim são reputadas a nível mundial.
Joaquim Magalhães de Castro