Os portugueses de Jadida
A troco de sessenta dirhams tive direito a um quarto minúsculo no último andar, desfrutando de excelente panorâmica para as ruelas dos diferentes mercados – os kissakanis dos panos, dos legumes, da carne – caracterizados, todos eles, por arcadas góticas de clara inspiração manuelina, assim como os umbrais das portas das casas do bairro. Nesse preciso local, existia outrora um bem organizado sistema de trincheiras e muros, os belagins, destinados a proteger as hortas onde os moradores da praça se abasteciam de verduras e frutos. As ruas nessa parte da cidade tinham designações francesas, e, no extremo sul, onde outrora estavam os “espadões que defendiam mar e terra”, erguia-se um farol que atirava luz todas as noites sobre a cidade. (Ao vê-lo, não pude deixar de me lembrar da defunta luz do farol da Guia, em Macau…)
No mercado dei-me conta de que o pão local sabia como o nosso e não como o que se come em Marrocos inteiro. À noite, no mercado, oportunidade para provar o chá com gengibre e canela. Mais uma versão do “uísque marroquino”, como gosta de lhe chamar a população.
Em Mazagão não vi sinais de guias nem ninguém a pedinchar ou a querer vender isto ou aquilo, o que não deixava de ser estranho, pois era um dos mais badalados destinos turísticos de Marrocos. Senti até que havia como que um distanciamento entre os residentes e os forasteiros, mas isso podia ter que ver com a incessante chuva. Em noite de lua cheia é o que dá. Iríamos ter todo o ciclo, até à lua nova, pelo menos, com mau tempo.
Com ou sem chuva, os mazagenses pareceram-me gente de poucas palavras e sorriso difícil. Arriscaria a dizer que eram até bastante desconfiados, porventura um resquício da lusa maneira de ser.
«– Porque é que me tirou a fotografia? Para ver se sou um dos vossos?» A pergunta foi-me feita por Madi, a mulher que vendia os ingressos para a Cisterna Portuguesa, o principal ponto de interesse da Magazão fortificada, que na sua traça urbana se assemelha a uma vila medieval portuguesa. Madi assumiu-se imediatamente como portuguesa, concluindo a nossa breve conversa com um «nós e os portugueses somos como irmãos».
Os ocupantes da antiga Mazagão, ou Mazagi, que em dialecto significa “mar calmo”, rumariam ao Brasil, em 1769, e ali fundariam a cidade de Nova Mazagão. Consta que – e há documentos que o comprovam – quando o Marquês de Pombal resolveu mandar abandonar a cidade, porque esta dava “muita despesa e pouco lucro à Coroa”, enviando para isso uma esquadra destinada a trazer os lusos de volta, estes mostraram-se bastante relutantes em fazê-lo.
Apesar dessa debandada forçada para o Novo Mundo, os marroquinos ainda hoje referem “os portugueses de Jadida”, facto que não deixa de ser significativo. Além da cisterna, por assim dizer, o museu da cidade, não havia muitas mais iniciativas promotoras do carácter eminentemente turístico da cidade. Eram excepção a Leitaria Mazagan e o Restaurant Portugais (que apenas servia comida marroquina), ambas na Rua Direita, e duas ou três lojas de venda de artesanato, mantendo-se a cidade um espaço essencialmente residencial, em tal estado de degradação que me fez sentir vergonha de ser português. Portugal continuava a ter em Mazagão (como em Arzila, Azamor e tantas outras praças) uma oportunidade única de mostrar a sua história e nada fazia por isso.
De todos os lugares que ocupamos no Norte de África, Magazão foi o que mais perdurou e se destacou pelo seu traçado típico, a fazer lembrar uma povoação lusitana, ainda hoje bem visível. Seria a maior fortaleza construída em terras marroquinas, nela tendo trabalhado cerca de quatrocentos artífices idos da metrópole sob a orientação dos arquitectos Francisco e Diogo de Arruda, no Verão de 1514. Era, inicialmente, uma típica fortificação medieval. Aquilo que hoje se vê é o resultado de trabalhos posteriores de ampliação da mesma, que decorreram em 1541-42 sob o olhar atento de João Castilho e João Ribeiro, obedecendo ao plano delineado pelo italiano Benedetto de Ravena, posto ao serviço de D. João III pelo imperador Carlos V, para quem há muito trabalhava.
Atente-se ao que Dias Farinha diz acerca desta matéria: «Construídas segundo a técnica militar que impunha a resistência à artilharia, as muralhas erguem-se, apenas, a cerca de catorze metros acima do nível da água do fosso que as rodeava. Tinham, porém, a mesma largura e no ângulo erguiam-se quatro fortes baluartes em forma de folha de trevo onde se colocava a artilharia. A largura do muro aumentava aí, de maneira a permitir os movimentos dos carros da artilharia».
Com o incremento da população militar e civil, em finais de Seiscentos, seriam muitas as construções a invadir os muros e os baluartes, havendo mesmo vários edifícios de dois andares que granjearam aos portugueses a boa reputação enquanto construtores. Isto quando sabem quem realmente somos, pois, por mais incrível que possa parecer, muitos dos marroquinos continuam a confundir-nos com os espanhóis ou a ignorar por completo a nossa existência como povo com identidade própria.
Joaquim Magalhães de Castro