Muralhas de Salé
Salé está para Rabat como Gaia para o Porto ou Almada para Lisboa. Separa-os um rio e uma ponte. Também nessa cidade são as muralhas alaranjadas o que mais chama a atenção do forasteiro. Em Salé – facto historicamente comprovado – tivemos feitoria e foi com base nessa indicação (fornecida em Lisboa, de fonte segura) que parti em busca da fortificação portuguesa, algures no norte da cidade. Apanhei o autocarro 21 (os cobradores de autocarro em Rabat são invariavelmente mulheres), que me levou até à banda de lá, circundando depois, em toda a sua extensão, a muralha da cidade e, já na estrada costeira, continuando para o cashbá Al Geddel, a minha única referência. Perto dali, avistavam-se, de facto, quatro paredes com ameias em ruínas. Mas, de tão velhas e esboroadas, é provável que a sua origem seja muito anterior à passagem dos portugueses.
Dentro do Al Geddel, estava instalada uma tenda de circo (o Chapitô lá do sítio) e uns prefabricados onde alguns franceses e marroquinos monitorizavam um interessante projecto educativo que pretendia afastar as crianças de famílias desfavorecidas do vício da cola e das ruas sem futuro, ensinando-lhes, além do currículo escolar obrigatório, técnicas circenses que eles depois punham em prática em exibições um pouco por todo o País. Questão de lhes levantar a auto-estima. Interessei-me pela instituição, mas assim que me dispunha a fotografar o local, uma das professoras, certamente num acesso de excesso de zelo, impediu-me de o fazer, argumentando que para tal precisaria de «uma licença da madame» encarregada do projecto, e como «a madame não está na cidade», nada se podia fazer. Enfim, burocracias de um outro circo que mal ficavam naquele, que pretendia ser de fraternidade e descompressão.
De Al Geddel trouxe a informação de que existiria um túnel que liga a cashbá às muralhas da cidade, e cuja entrada se situaria junto ao mausoléu de um eremita local santificado pela população, já em Salé. Percorri essa distância a pé, sempre atento à crista alcantilada a fazer lembrar a costa que vai de Cascais à Boca do Inferno, e mais além. Era ainda o mesmo mar que ali avistava, por mais que lhe tentasse encontrar diferenças. E por que razão haveria de ser diferente?
Um velho afastou-se, com um intuito óbvio, em busca de um pedaço de rochedo onde se ocultar, pois a costa nestes degradados bairros periféricos, seja ela de areal ou de rocha afiada, substitui a retrete, inexistente em grande parte dos lares.
No perímetro amuralhado de Salé eram muitos os canhões corroídos pela ferrugem, apontando tristemente para o mar. Esse era poiso também de gente perdida, heroinómanos e um ou outro desportista.
A sexta-feira é, entre os muçulmanos, dia de visita aos defuntos, facto que explicava o inusitado movimento junto ao cemitério local. Ali se concentravam vendedores de água benta e de flores, os ambulantes e os que improvisavam banca à espera de quem lhes fizesse a compra. Também não faltou quem se escandalizasse com a inesperada presença do “cristão” de máquina fotográfica em punho. Numa das entradas do cemitério, assisti a uma dessas patéticas sessões de “entrega de pão aos pobres” por parte dos mais ricos, descarga de consciência particularmente popular também entre os hindus.
Um indivíduo que encontrei perto de uma das escolas corânicas da cidade, referência a nível educacional reputada em todo o País, garantia-me que as velhas muralhas que rodeavam a cidade eram portuguesas, assim como um estaleiro de barcos que não consegui encontrar. Temi que essas informações fossem ainda resquícios dos falsos guias, que não só enganavam o forasteiro (dizendo aquilo que ele queria ouvir), como tinham o descaramento de o alertar para os estratagemas utilizados por outros falsos guias, a sua concorrência directa, portanto.
Por norma, as embaixadas situam-se sempre nos desertos das cidades, ou seja, nos arredores dos arredores. E a embaixada da Mauritânia em Rabat parecia ficar tão longe quanto a Mauritânia.
Já no interior das instalações, pediram-me que aguardasse numa espécie de garagem onde me foi entregue um formulário. Estavam ali alguns marroquinos e um outro estrangeiro – um motoqueiro que não falava Francês.
Aguardei que me conduzissem a uma sala onde o embaixador, um negro engravatado, sentado a uma secretária, me perguntou:
«– Quanto tempo deseja?»
Respondi-lhe com uma outra pergunta, pois tencionava eventualmente visitar o País mais do que uma só vez. Retorquiu-me:
«– Sim, se for visto de dupla entrada paga a dobrar. É lógico, não?»
Um visto que começava a contar a partir do momento em que era emitido. Apesar do aparato, o processo foi simples e o custo de vinte euros ficou muito aquém dos cinquenta que cobrava a Dona Zaida, residente em Corroios, cônsul honorária da Mauritânia em Lisboa.
Joaquim Magalhães de Castro