Rabat, a capital
De Kenitra a Rabat são vinte e cinco quilómetros ao longo de um extenso sobreiral de múltiplos hectares de cortiça concorrente à nossa. A poucos quilómetros da capital, inesperada e obrigatória mudança de camioneta, antes da longa descida que nos conduziu ao centro da cidade. Chovia e era já noite quando ali chegámos.
Depois de tanta abordagem interesseira, múltiplas propostas e ofertas envenenadas, que frequentemente incomodam quem se desloca ao Norte de África, acabei por deparar com a genuína gentileza magrebina, quem diria, na capital do País. A gente de Rabat demonstrou ser a mais simpática e a mais honesta de todo o norte marroquino. Ninguém me tentou enganar, ninguém me quis vender nada, ninguém me olhou como se fosse um bicho raro. Em Rabat, sim, foi possível confundir-me com a multidão. Um raro prazer em Marrocos.
Adberrahim Boutrig era berbere e, perante a minha dificuldade em encontrar alojamento (todas as pensões estavam cheias), solidarizou-se de imediato, acompanhando-me até que surgisse poiso adequado às minhas disponibilidades financeiras. Admirei-lhe o gesto, se bem que a sua presença fosse mais motivo de equívocos do que propriamente salvo-conduto em terra alheia. Mesmo assim, foi agradável travar conhecimento com um marroquino cujo único interesse era o simples selar de uma amizade.
Casado com uma anglo-jamaicana cinquentona (mais um desses milagres via Internet), Boutrig, na casa dos trinta e poucos anos, admitia ter assumido semelhante contrato para conseguir os papéis que lhe permitam vir a residir na Grã-Bretanha, o que se estava a revelar bastante difícil, pois a sua “paixão cibernética” não tinha trabalho fixo nem nunca pagara impostos. Além disso, talvez por ter dado ouvidos a um alerta dos serviços de imigração britânicos – um alerta mais ou menos assim: “Sabia, cara senhora, que nos países muçulmanos os homens jamais se casam com mulheres mais velhas?” – não parecia muito interessada em alterar a sua situação para assim poder garantir albergue europeu ao marido norte-africano. Boutrig admitia o seu oportunismo e falava já na possibilidade de abandonar a anglo-jamaicana e começar a pescar algo na rede cibernética, mas em águas Schengen.
«– Olha, este é o meu currículo», dizia, mostrando-me folhas de A4 enroladas. «– Há meses que não faço outra coisa senão enviar currículos. De nada me serve. Não há maneira de encontrar trabalho».
Com Boutrig descobri, no mercado nocturno de Rabat, bolotas comestíveis, cruas ou cozidas (sabiam a castanhas!), lembrando-me que elas fizeram outrora parte da lusitana alimentação de base, e descobri também sítio onde comer a minha sopa de favas favorita (em determinados tascos de Rabat juntavam-lhe água, os sátrapas…), antes de passarmos a uma cerveja Flag, camuflados no interior de um café-restaurante que apresentava no menu um hamburger à la portugaise. Nem tive a curiosidade de saber o que era. Apesar da modernidade, o consumo de álcool nas cidades fazia-se com a maior discrição. Boutrig, resistente, ficou-se pelo chá, mas não se coibia de comentar as generosas formas das compatriotas citadinas, reveladas por calças de ganga tão ou mais ousadas do que aquelas que vestem as jovens europeias, e que não hesitavam em trocar olhares atrevidos com o estrangeiro.
«– As mulheres são como nós – comentava o berbere – todas tentam encontrar alguém que as leve».
Rabat era a montra de um país propulsionado a duas velocidades. Moderno e tradicional conviviam a escassos metros. A rua que separa a almedina das grandes avenidas que conduzem ao palácio real, residência oficial de Mahommed VI, surgia como ponto de charneira dessa capital imperial, a última das quatro existentes. Atravessava-se essa rua, e transitava-se do Marrocos das esplanadas ao melhor estilo europeu para o dos souqs. Do emaranhado de mercados e ruelas, prolongando-se num longo corredor em direcção ao mar intervalado pelos minaretes das mesquitas, verdadeiros pontos de referência. Um imenso mercado de onde se passa dos comestíveis aos têxteis e destes ao calçado, para terminar no artesanato, antes de nos confrontarmos com o magnífico palácio dos Oudeyas, habitat dos representantes de sucessivas dinastias, na confluência do rio Bouregreg, onde mulheres com seringas sem agulhas, mas cheias de henna, chegavam a assustar o visitante mais distraído quando o abordavam, de rompante, convidando-o a fazer uma dessas tatuagens provisórias.
Dentro das muralhas do palácio está o cashbá, povoado de gatos e casas caiadas de azul e branco com pátios interiores floridos, algumas delas propriedade de estrangeiros, à semelhança do que acontecia em todas as praças-fortes da costa atlântica. No cashbá, o comércio dava lugar à cultura, como o comprovava a presença de dois museus alojados nas paredes da imponente estrutura defensiva. Um deles, temporário, apresentava uma mostra de pintura coreana contemporânea. No outro, dedicado à história, encontrei algumas peças de origem portuguesa, das quais há a destacar um canhão e um capacete.
Joaquim Magalhães de Castro