A batalha de Sebastião
Há-as, as excepções, sei que sim. Mas que fazer? Está-lhes no sangue. A generalidade dos marroquinos parece incapaz de uma abordagem desligada de negociatas (ainda ousam falar mal dos judeus…). Se o distraído visitante adrega de olhar para um canhão demoradamente, perguntam-lhe: “Quer comprar?”
Em Arzila conheci um tal Mouissa, professor de ofício. Começou por se vangloriar, falando-me da casa que ia comprar e de um irmão endinheirado, mas, antes de partir para Tânger, pediu-me cinquenta euros emprestados. Como lhe franzi o sobrolho, reduziu a coisa para metade. Percebi logo a extensão da jogada, e, por isso, estendi-lhe cinquenta dirhams, dando-lhe a entender que para mim a conversa acabava ali. Estava assim a pagar-lhe os chás oferecidos e a visita guiada que ele, como professor, ou suposto professor, me impusera, com passagem, claro, pelas lojas dos amigos na esperança de que lhes comprasse algo.
Na camioneta que me ajudou a percorrer os 140 quilómetros que separam Arzila de Rabat travei conhecimento com dois seguranças de uma das discotecas da cidade. Mohammed e Saikouk tinham assinado um contrato no valor de 150 euros por mês. Pelos vistos, o patrão não o respeitara. Por isso regressavam a casa, para preparar o processo judicial. A tarefa apresentava-se difícil, mas eles faziam questão de a levar até às últimas consequências. O mais velho, Saikouk, antigo maquinista de barcos-dragas, trabalhara na Figueira da Foz e em Viana do Castelo. Mostrava-me, orgulhoso, as fotos comprovativas da sua passagem por terras lusitanas.
Junto à estrada, as lixeiras continuavam a apresentar-se a céu aberto e, embora alternassem com as plantações de cebolas e a terra ocre, com pinheiros e eucaliptos, o cheiro a plástico queimado era uma constante. Ali não havia estações de tratamento nem aterros sanitários.
Em Larache, antigo poiso de piratas onde os portugueses estabeleceram feitoria, e da qual, segundo consta, restam alguns vestígios das muralhas, entraram de rompante no autocarro vários miúdos, vendedores de amendoins e sucedâneos de chocolate, e alguns pedintes com a lengalenga bem estudada.
Não muito longe dali, dois locais representativos dos maiores desastres de toda a campanha portuguesa em terras marroquinas. Alcácer Quibir e Kenitra. Havia névoa alaranjada para os lados do primeiro. Certamente sugestionado pela pena do vate, pareceu-me ouvir “os sons plangentes dos instrumentos tocados pela alma dos defuntos portugueses” que pereceram nessa catástrofe e deram origem a uma lenda na aldeia vizinha de Duar Suakim (em Árabe, “aldeia da música”). É conhecida a leviandade com que foi preparada a expedição e o excesso de optimismo entre as hostes portuguesas, a tal ponto que os fidalgos levaram filhos e netos para assistirem ao espectáculo. Segundo o historiador Mário Domingues, eram muitos os músicos a bordo dos navios, além da variedade de instrumentos que, juntamente com os cadáveres, juncaram o campo de batalha, ao longo das margens do rio de Makhazen.
Para os marroquinos, a refrega ficou conhecida como “batalha dos Três Reis”, ou “batalha do Oued Makhazen”. Oued ou ued significa rio, topónimo de onde resultariam nomes como Odeleite, Odesseixe ou Odemira. Curiosamente, morreriam na refrega os três soberanos que nela participaram. Abdelmalek, de morte natural, na sua tenda, logo no início do combate; facto mantido em segredo para não desanimar as tropas. Sebastião e o seu aliado Moutaukil sobraçariam no campo de batalha, provavelmente afogados no rio Makhazen. Apenas o corpo deste último foi encontrado. Esfolado e enchido com palha pelo inimigo, passaria a ser conhecido na história marroquina como o Esfolado.
Consta que junto de Alcácer Quibir é ainda visível a placa colocada, em 1930, por excursionistas de Coimbra, em jeito de homenagem a todos os portugueses que ali morreram.
Desejado foi à nascença e desejado permaneceu para a história. Rei, algo inconsciente. Teimoso. Aventureiro. Desobediente. O que teve em excesso Sebastião, têm em défice os portugueses hodiernos. É como se todo um povo, neste seu medo de existir, se esteja a redimir de um trágico erro do passado. Mas será que é mesmo assim?
Tomás Colaço, um artista plástico que conheci meses antes da minha partida para África, via as coisas sob outro prisma. E afirmava que o monarca não morrera em Alcácer Quibir. A prova disso é que ele se assumia como um dos seus descendentes.
«– Fala-se e escreve-se muito a propósito de D. Sebastião, mas nem sempre de forma honesta».
E mais não dizia Tomás Colaço, ocupado a meter no automóvel uma série de mantas com as quais preparava a sua nova criação artística. À nossa frente, a imponente fachada azulejada do edifício onde vivia e tinha o seu ateliê. Um local, Rua da Esperança, todo ele a apelar ao mito. Foi ali que as gerações mais recentes dos Colaço guardaram um segredo com muitos anos que um tio-avô, escritor, Tomás Ribeiro Colaço, revelaria, em 1940, antes de rumar ao Brasil. Segundo ele, D. Sebastião não só não morreu em Alcácer Quibir como deixou descendência em Marrocos, que perdura nos dias de hoje.
Joaquim Magalhães de Castro