Cashbás, tamareiras e água sulfurosa
Prosseguimos viagem através do planalto do vasto Atlas, onde, de vez em quando, surgiam, expostos à beira da estrada, em local visível, frascos e garrafas de mel de urze. Embora não os avistássemos, sabíamos que os vendedores estariam algures. Quiçá a tomar conta de um rebanho no outro lado do outeiro. Avistavam-se, isso sim, ao longe, caçadores urbanos de fim-de-semana, movimentando-se pelo interior montanhoso em veículos todo-o-terreno, tão bem ou mais bem apetrechados do que os estrangeiros que víamos rumar a Sul, em busca da sua aventura pessoal, do seu “chá no deserto”.
Cientes da riqueza do subsolo na região de Rich, abundante em águas sulfurosas, parámos junto a uma afamada fonte para beber um copo desse líquido, excelente para os rins, segundo os entendidos. É da praxe local cumprir este gesto.
Duas dezenas de quilómetros mais adiante, nova paragem. Desta feita, para um banho reparador numas termas bastante conceituadas por aquelas bandas. Frente às humildes instalações estavam sentados alguns velhos – há séculos, dir-se-ia – tentando vender baldes de plástico, escovas, sabonetes e restante parafernália relacionada com a higiene pessoal. Junto ao rio Ziz, que corria ali perto, chapinavam numa presa de água lamacenta homens e mulheres, excursionistas certamente, de calças e saias arregaçadas. Ao aproximar-me constatei que eles, afinal, aproveitavam um pequeno jorro de água que saía da terra quase em ebulição. Estabelecido o contacto inicial – de forma espontânea, como sempre acontece no dito Terceiro Mundo, que em termos de relacionamento humano está à frente do Primeiro Mundo alguns anos-luz – passámos então uns bons minutos a jogar ao faquir, a ver quanto tempo conseguíamos manter os pés no caldo. Fiquei desde logo a saber que não tenho qualquer vocação para caminhar em cima de brasas, já o mesmo não se podia dizer de dois rapazes de Casablanca. Numa demonstração de quase puro masoquismo, aguentaram estoicamente um par de minutos, uma temperatura de, podemos chamar-lhe assim, cozedura pura.
O escaldão que levei nos pés teve o condão de me retirar temporariamente a dor na coluna que me molestava há já uns dias. Ao menos isso.
À saída de Rich, lá estavam (quase me tinha esquecido deles) os amigos polícias, a medir a velocidade, fazendo-se sobretudo ao dinheiro, deixando para segundo plano a bem mais nobre tarefa de tentar reduzir a taxa de mortalidade nas estradas de Marrocos, a quarta mais elevada a nível mundial. Nesse país, traços contínuos, passadeiras e coisas assim existiam apenas para serem ignorados e transgredidos.
Os primeiros cashbás surgiram-nos antes das gargantas de Ziz, inseridos num tipo de paisagem que podia muito bem ser na Mongólia ou até no Tibete, e que a certa altura me fez lembrar o Grand Canyon, pois vivi intensamente os filmes de cowboys e apaches durante a infância. Nesse desfiladeiro norte-africano, a breve visita a uma alcáçova em ruínas deu azo à aglomeração de crianças e mulheres que num ápice rodearam o automóvel, iniciando uma pedinchice previamente ensaiada: «Messiu, messiu, bombon, stylo, argent». Nessa ladainha em coro, assumia particular protagonismo certa senhora já de idade, rosto tatuado, à boa maneira das berberes do Atlas profundo. Os padrões decorativos gravados na sua pele eram comuns nas mantas negras, bordadas a fio de lã, que envergavam as mulheres que doravante surgiriam ao longo das bermas da estrada, anichadas à porta de casa nas raras aldeias, acompanhadas de jumentos transportando ramos de tamareiras carregados com esse maná do deserto, ou então, a uma distância bem mais considerável, sentadas nas eiras onde os frutos secavam ao Sol. Eram tâmaras de diferentes qualidades e diferentes cores consoante o estado de maturação no processo de secagem. Do universo da oliveira tínhamos transitado, definitivamente, para o universo da tamareira.
«– Messieur, voulez vous voir la kasbah?». A voz, que parecia vir das ruínas, era de uma mulher. E não era a voz da vendedeira de cestinhos de tâmaras, pronta a atender o freguês inesperado, já à saída do surpreendente território cor de barro. A voz – parecia trazê-la o vento – associei-a a uma silhueta que mal vislumbrei atrás do gradeamento da janelinha de uma casa de terra batida. Uma silhueta que legitimamente procurava arrecadar alguns dirhams que acrescentassem algo a um provável magro sustento.
Apesar de ser um mero ponto de passagem, o factor turismo deixara ali, como se constatava, a sua inefável pegada.
Errachidia, a cidade mais significativa a leste de Marraquexe, está provida com um aeroporto (será mais correcto dizer aeródromo) que recebia um voo por semana, e uma barragem que retém a água do Ziz antes de esta escoar, num ramificado de veios, pelas areias do deserto. Em Errachidia almoçámos o tagine de frango habitual, desta vez com um prato de nubia (feijão) que valeu bem os seis dirhams extra. Tudo isto acompanhado de batatas fritas em palitos e umas sardinhas espalmadas que deviam ter sido secas e salgadas antes de ali chegarem. Quem disse que se come mal em Marrocos?
Joaquim Magalhães de Castro