Há aspectos culturais que não devemos permitir
Para Conceição Queiroz, a eleição a 6 de Outubro de Beatriz Gomes Dias, de Joacine Katar Moreira e de Romualda Fernandes para a Assembleia da República Portuguesa constitui um triunfo da democracia em Portugal. Nascida em Moçambique, a grande repórter da TVI é a primeira mulher negra a assumir o estatuto de “pivot” na televisão generalista em Portugal. Tal estatuto, garante a jornalista, alcançou-o a pulso. Conceição Queiroz falou a’O CLARIM no âmbito de uma breve deslocação a Hong Kong.
O CLARIM– A Conceição é a primeira pivot negra da televisão generalista portuguesa. Continua a ser difícil para um negro em Portugal, seja mulher ou seja homem, chegar a um patamar destes?
CONCEIÇÃO QUEIROZ– Sim e não. Não é fácil. Eu acho que é uma conquista acima de tudo. Mas é também uma afirmação, da nossa parte sobretudo. Aprendi a confiar em mim porque se eu fosse a acreditar em tudo aquilo que me diziam – quer os negros como eu, quer os brancos – toda a gente me dizia: “Não, isto é impossível. Não, isto é difícil. Ninguém chega lá”. Para mim o chegar lá era estar empregada, simplesmente. Eu fiquei desempregada, saí do Rádio Clube Português, depois sai do Semanário e fiquei sem emprego. Foi quando equacionei tentar o jornalismo de televisão, que era algo que não me dizia nada. Eu cresci sem televisão em África até aos doze anos. A certa altura – e como eu precisava de trabalhar – disse-me a mim mesma que iria tentar. Curiosamente, comecei por ser rejeitada na RTP África. Não fiquei na RTP África depois de três entrevistas. Fui rejeitada, não fiquei e pensei: “Se eu não fico na RTP África, onde é que vou ficar?”. Da SIC tinham-me dito que o currículo ficava registado e que me diriam qualquer coisa em breve. Para a TVI não enviei o currículo: fiz um telefonema de uma cabine telefónica. Liguei numa sexta-feira, duas horas depois fui a uma entrevista e no dia seguinte comecei a trabalhar, num sábado. Com isto tudo, resumindo, passaram-se 25 anos desde que comecei a trabalhar, em 1994. É incrível que tantos anos depois, no meu caso por exemplo, ainda dê nas vistas por ser a única negra na condução dos noticiários em Portugal. O que mais posso dizer? Da minha parte eu esforcei-me imenso, eu dei tudo. Isto não foi um sonho. Eu nunca pensei ser pivot. É uma questão de evolução normal da carreira nesta área e em televisão.
CL– Há margem ou não para a grande reportagem nas redacções portuguesas?
C.Q.– Há! Tem de haver. E será um perigo para o jornalismo sério se um dia a grande reportagem deixar de existir. Se temos mais dificuldades? A resposta também é sim, mas isto tem a ver com o espírito de cada um enquanto jornalista. Eu tenho menos tempo agora para a grande reportagem, porque passo mais tempo em estúdio, também é verdade, mas enquanto me dediquei unicamente à grande reportagem, aquele trabalho era uma missão. Noites houve em que não dormi. Eu cheguei a fazer dezoito horas consecutivas de trabalho, mas isto é normal. E nunca meti folgas na grande reportagem. A grande reportagem exige um investimento grande da parte do próprio repórter. Há um investimento pessoal e há um investimento profissional, que não tem preço. Tu dás tudo e não pode ser de outra forma.
CL– Passou pelo jornalismo escrito, pelo jornalismo radiofónico, agora e já há bastante tempo na televisão. Qual é o seu meio de eleição?
C.Q.– A linguagem televisiva. São linguagens muito diferentes. A linguagem da rádio, conheço-a bem, a linguagem do online conheço-a bem, a linguagem do jornal em papel conheço-a bem, mas a linguagem televisiva é aquela que me diz mais, porque é aquela que é a mais imediata, que é a mais concisa e que é mais objectiva. Não há espaço para floreados. Eu gosto da linguagem televisiva. Estamos numa altura em que há um desinteresse maior pela televisão e é nossa responsabilidade enquanto jornalistas tentar cativar as pessoas com linguagem mais apelativa. Eu acho que a nossa alma está lá ou não está. E se não estiver tu dificilmente consegues conquistar as pessoas, não é? Cada uma das tuas reportagens, cada um dos teus trabalhos transporta ou mostra ao telespectador um bocadinho de ti também. Os nossos trabalhos têm um pouquinho de nós próprios enquanto seres humanos.
CL– Qual foi a história mais complicada que lhe passou pelas mãos? Ao longo destes 25 anos, qual foi aquela que mais a tocou?
C.Q.– Foram tantas que seria injusto destacar uma, mas eu destaco quase sempre a mesma situação: a mutilação genital feminina. Foi aquilo que mais me custou ver. Apesar de tudo, de ter visto inclusive gente a morrer à minha frente. Na mutilação genital feminina estão a mexer com a parte mais sensível do teu corpo, utilizam qualquer objecto cortante e fazem passar isso por cultura. Somos obrigados a questionar: “O que é a cultura?” Eu também sou africana, mas eu própria sendo africana também questiono: “O que é a cultura?” A cultura é uma discussão e há aspectos numa discussão que não podemos permitir. Se a escravatura também era cultura, o incesto também era cultura e nós conseguimos ultrapassar isso, porque é que a mutilação genital feminina se mantém? Por ser um negócio rentável? Porque a mutilação genital feminina é um negócio rentável. Quem a pratica, é muito bem pago para a fazer. Chocou-me muito.
CL– Rematava a entrevista da mesma forma que a comecei. Nas eleições legislativas portuguesas, no início do mês, tivemos a eleição de três mulheres negras para a Assembleia da República Portuguesa. É um triunfo da própria democracia portuguesa? Ou peca por tardia, esta eleição?
C.Q.– Não digo que seja tardia. Se tivesse acontecido mais cedo, teria sido bem vinda. Mas, como dizia, é uma vitória da democracia em Portugal. É bom para os mais novos, é bom para os mais velhos que se comece a olhar para os negros de forma diferente. E é bom para nós também, para nós, os negros. É bom para toda a gente, toda a gente sai a ganhar. Chegamos a um ponto em que a questão da cor da pele é quase uma questão de ascensão social. Se tu estudaste, se tiraste um mestrado ou um doutoramento, falas correctamente, exprimes-te bem, movimentas-te em bons sítios e tens uma posição simpática dentro da tua área de trabalho, as pessoas vão logo pelo lado da ascensão social. Se ela está bem, se se posiciona bem, ela pouco ou nada tem a ver com a comunidade africana. É mentira. Eu tenho tudo a ver com a comunidade africana. Enfrentei grandes lutas porque me chamavam “Conguito” no início e eu não pude admitir. Zangava-me muito. Nesta fase da minha vida, aos 45 anos, se me apetecer responder, eu respondo. Se não me apetecer responder, já não respondo a provocações. Deixo as pessoas falar, já não interessa nada. Acho que são pessoas que, de grosso modo, são mal resolvidas. Se a pessoa é mal resolvida, ela tem uma necessidade de provocar, de chatear. Quem é feliz não chateia ninguém, não é?
Marco Carvalho