Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XVII

O Grande Cisma de 1054

Quando usamos a palavra “cisma” queremos essencialmente denominar a divisão formal e consciente da unidade da Igreja, do Cristianismo. Muitos conotam “cisma” com heresias, mas não são sinónimos. Cisma é uma palavra usada para designar a divisão formal e voluntária da unidade da Igreja cristã. Ao contrário da heresia, com a qual muitas vezes é conotada, não contém em si mesmo um desvio doutrinal. Há vários cismas na história do Cristianismo, mas nenhum tão fracturante e tão longo, quase um milénio, como o designado Grande Cisma, ocorrido em 1054, que separou, até hoje, a Igreja do Ocidente, com sede em Roma, do Oriente, simbolicamente centrada em Constantinopla (Bizâncio). Houve uma ruptura de relações entre o Oriente e o Ocidente, da Igreja no seu todo, de forma total e absoluta. Mais nenhum cisma deverá ser designado como Grande Cisma, pois nenhum dividiu tanto nem durante tanto tempo e de forma tão radical.

Durante o terceiro Concílio de Toledo, em 589, momento em que se converteram os visigodos ao Cristianismo, passou-se a acrescentar o termo latino “Filioque” (que se traduz “e do Filho”), termo pelo qual o Credo passava a declarar que o Espírito Santo procede não apenas do Pai, como afirmava o Credo de Niceia (325), mas do Pai e do Filho: “et in Spiritum Sanctum, dominum et vivificantem, qui ex Patre Filioque procedit”. Ou seja: “e no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, que procede do pai e do Filho”.

Outras disputas teológicas e doutrinais, querelas eclesiásticas, ajudaram também a criar tensão e distanciamento entre Roma e Constantinopla. Para além do “Filioque”, a questão do uso de pão fermentado ou não fermentado na Eucaristia, além das alegações do Papa sobre a sua primazia jurídica e pastoral, o seu primado, além da posição de Constantinopla em relação à Pentarquia, como já aqui vimos. Para além disto, existia uma firme oposição do Ocidente em relação ao cesaropapismo bizantino, isto é, a subordinação da Igreja a um poder secular, como sucedia na Igreja de Constantinopla. Depois temos as já referidas Querelas das Imagens, ou iconoclasmas, nos séculos VIII e IX. Roma a favor dos ícones, os imperadores bizantinos da época, mais avessos, restaura-se a Iconofilia mas fica ferida latente.

Uma ruptura grave ocorreu de 856 a 867, sob o Patriarca Fócio. Durante o patriarcado deste (858-867), a questão do “Filioque” tornou-se ainda mais um foco de discórdia, com a condenação por parte de Fócio da inclusão daquela expressão no Credo do Cristianismo ocidental, chegando ao ponto de a condenar como herética. Entrava-se numa controvérsia já não apenas disciplinar, jurídica ou litúrgica, mas agora, principalmente, dogmática. A unidade era assim posta em causa de forma mais profunda.

O distanciamento entre as duas comunidades, Roma e Constantinopla, tem raízes culturais e políticas muito profundas, quase tão antigas como o édito de Milão de 313. Por um lado uma cultura latina com forte influxo germânico, no Ocidente; por outro, um Oriente arreigado à tradição da Cristandade helenística, de matriz e tradição gregas.

 

HISTÓRIA

Quando Miguel Cerulário (c. 1000 – 1059) ascendeu ao sólio patriarcal de Constantinopla, em 1043, encetou uma feroz perseguição às comunidades latinas da cidade e respectivas igrejas, que manda encerrar, acusando-as de não cumprirem os ritos constantinopolitanos. Acusava ainda Roma de ser herética, de praticar uma “heresia judaica” por utilizar pão ázimo na Eucaristia. Além das igrejas latinas, toma posse dos mosteiros dependentes de Roma e expulsa os monges fiéis ao Papa. Na sua luta contra Roma, dirige mesmo uma missiva a todo o clero pejada de acusações renovadas contra as dignidades eclesiásticas ocidentais. A discussão teológica em torno Espírito Santo foi outras das suas frentes de luta.

Por essa época, vivia-se no Ocidente a ameaça normanda (vikings e seus sucedâneos). Leão IX, Papa (1049-1059), envia um legado seu a Constantinopla em 1054, para solicitar apoio em forma de aliança ao imperador bizantino. O legado era Humberto de Silva Cândida, que liderava a embaixada, composta pelos arcebispos Frederico de Lorena (futuro Papa Estêvão IX) e Pedro de Amalfi. Estes embaixadores foram bem recebidos pelo imperado Constantino IX, mas não por Miguel Cerulário, feroz crítico do primado da Cadeira de São Pedro na Igreja. Silva Cândida, francês, não era também simpatizante da Igreja oriental, diga-se. Cerulário ignorou mesmo o legado e sua embaixada, fazendo-os esperar meses. Diga-se que existia também uma outra incumbência nesta missão, que era a de pedir satisfações ao Patriarca bizantino, sobre a atitude de João, bispo de Trani, que enviara a Silva Cândida uma carta de Ácrida (atual Ohrid), a criticar os costumes e as práticas litúrgicas ocidentais. Além do mais o Papa já antes acusara Constantinopla de ser uma fonte de heresias e erros doutrinais, afirmando reiteradamente o primado de Roma. Cerulário nada aceitou, exasperando.

A visita de Silva Cândida era pois uma boa oportunidade para dirimir razões e afirmar posições. Os legados, neste clima, negaram o título de ecuménico ao Patriarca de Constantinopla, o seu lugar na hierarquia eclesiástica e puseram até em causa a legitimidade do processo da sua ascensão ao sólio patriarcal bizantino. Estava o clima estragado, dir-se-ia. Cerulário reafirma a sua negação de receber os legados. Cândida responde com um texto seu, “Diálogo entre um romano e um constantinopolitano”, em que ridiculariza os ritos orientais. Em 16 de Julho de 1054, em pleno altar mor da basílica patriarcal de Santa Sofia, o legado Humberto, cardeal de Silva Cândida, deposita ali uma nota de excomunhão contra Miguel Cerulário. Depois, virou costas a tudo e a todos e retirou-se. Mesmo de Constantinopla. Sem mais. Estava o cisma consumado.

Todavia, o Papa Leão IX falecera cerca de três meses antes, a 19 Abril de 1054. Logo, o acto poderia ser invalidado. Mas Miguel optou por responder na mesma moeda, excomungando o legado. Além de mandar retira o nome do falecido Papa de todos os dípticos e inscrições no Patriarcado. O Oriente passou a ser cismático, por duas razões essenciais (entre outras): a discordância quanto ao “Filioque” – o Espírito Santo para os bizantinos provinha do Pai e não do Filho – e o problema institucional gerado pela não aceitação da supremacia do Papa de Roma. Até hoje, o Grande Cisma, a maior de todas as divisões. Até quando?

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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