Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XVI

A Igreja Bizantina

Depois do nascimento do Estado Pontifício, a partir dos séculos VIII-IX, a par da afirmação da Igreja no Ocidente graças ao apoio carolíngio, ou seja de Carlos Magno, imperador do Ocidente, juntamente com o crescimento do poder do Sacro-Império Romano-Germânico – instituições todas elas de raiz romana e cristã – assiste-se à formação da Cristandade medieval, feudal sem dúvida, mas em franca progressão. Para leste e para norte, mas também no seu seio, nas instituições e na Teologia, na cultura e no ensino. Mas mais a oriente afirma-se a Igreja Bizantina, cada vez mais, em boa parte apertada entre o Islão califal e imperial e a Cristandade romana em avanço para norte e leste. Estamos perto do ano Mil, estamos perto de mudanças. A leste, principalmente, entre os bizantinos.

Para melhor se perceberem as divisões fracturantes após o ano Mil, na Cristandade, é importante conhecermos o contexto histórico das mesmas. As diferenças, a concepções distintas, mundividências diferentes, visões que se distanciam, práticas díspares, tudo se conjuga lentamente para que qualquer rastilho se torne em algo fragmentário ou dilacerante.

A concepção bizantina das relações entre Igreja e Estado tinha como fundamento a doutrina da solidariedade. Não a separação o mais efectiva possível de poderes, como se tentava no Ocidente, com a Igreja a assumir-se como universal e romana, como temos visto. A Oriente, entre os bizantinos (de cultura grega), com sede em Bizâncio (ou Constantinopla), atacar a Igreja era por em causa o Estado, o poder político, e quase o vice-versa. Criavam-se logo desequilíbrios na sociedade. Não esqueçamos que por ali o imperador afirmava-se como imagem viva de Cristo, sendo por isso considerado o protector da Igreja, que o apoiava. Logo por aqui se entende como poder e religião não possuíam limites definidos ou separados.

A Teologia era assunto de Estado, com os imperadores a terem a última palavra nas controvérsias ou querelas em matérias doutrinais, o que levava muitas vezes a erros teológicos ou, a médio e longo prazo, a consequências nefastas e celeumas, crises e heresias até. E cismas… Havia sim uma contaminação entre teologia e política, Igreja e Estado. Imperadores houve a legislar acerca da espiritualidade monástica, dos poderes dos mosteiros, da acção dos monges, ou questões doutrinais. E a querela das imagens, ou iconoclastas, dos séculos VIII-IX, não foi fruto da ingerência do imperador (Leão III, o Isáurico) na produção, difusão e culto dos ícones sagrados, área estritamente eclesiástica? Exemplos não faltam.

Os mosteiros eram as unidades centrais da Igreja Bizantina. Dirigiam a vida religiosa, o culto, a liturgia, a Teologia e seu ensino, enfim praticamente toda a Igreja. Os bispos e Patriarcas eram normalmente de extracção monástica. E era nos mosteiros que, enquanto alfobres teológicos, nasciam as heresias e as controvérsias também. As fundações monásticas eram imensas, sumptuosos eram os mosteiros e a vida litúrgica e monástica, criando-se autênticas “repúblicas monásticas”, como na península de Athos na Grécia ou na Capadócia, na Ásia Menor.

O território do Patriarcado de Bizâncio (Constantinopla) cresceu também nesta época, nos Balcãs, na Grécia continental e insular, até à Sicília e Sul de Itália. Confundia-se com o Império Bizantino, aliás, como em tudo… O Patriarca era promovido e confirmado pelo imperador, aliás, depois de votado pelo sínodo de arcebispos metropolitanos. O Patriarca era pois a segunda figura do Império Bizantino.

 

Influência da Igreja em Bizâncio

Apesar da contaminação, a Igreja exerceu uma influência positiva em Bizâncio e no seu império. O absolutismo real foi atenuado pela acção da Igreja, que fez na maior parte das vezes que se respeitasse a lei. A harmonia entre os dois pólos do poder, imperador e Patriarca, só foi possível, durante mil anos, graças à influência apaziguadora da Igreja.

Mas esta não teve, porém, grandes teólogos, como no Ocidente. Foi uma Igreja mais dedicada aos ritos, às fórmulas, gestos, enfim, à liturgia. Mas sem esquecer a filantropia, a caridade, numa esfera de acção pautada pela vida monástica.

Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o Direito Canónico, as instituições também. Existiu sempre uma continuada simbiose entre Direito Civil e Direito Eclesiástico, base das relações políticas e religiosas. Há como que um organismo combinado estatal-eclesiástico, com os seus corpos, instituições, funções. Acima desta orgânica, está um poder bicéfalo, imperador e Patriarca. Poderá ser essa a fórmula que sustentou um império durante mil anos, até 1453, quando os turcos o derrotaram. Podemos ver aí nessa fórmula o mitigar da acção agressiva e dura do Estado por parte da Igreja. Mas também o desenvolvimento da ortodoxia, da tradição, de uma fé imutável e de um estado intocável. Uma sociedade imóvel em hábitos e costumes, assente nesse equilíbrio social gerado pela simbiose das instituições imperiais e patriarcais, dos direitos enfim. E daí o medo pelo novo, pelo externo, pelo que vem de fora. Como Roma e seus legados, bulas e mandos. Como veremos.

Com efeito, as relações entre Oriente e Ocidente pautavam-se cada vez mais pelas disputas eclesiásticas e teológicas. Como a polémica sobre a fonte do Espírito Santo (“Filioque”), se se deveria usar pão fermentado ou não fermentado na Eucaristia, as alegações do Papa sobre o primado jurídico e pastoral, e a função de Constantinopla em relação à Pentarquia. Ou seja, o sistema eclesiástico baseado no governo de cinco Patriarcas: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Em vez de uma monarquia, assim afirmava Roma, sede de Pedro, enquanto instituído sucessor de Cristo. Já Constaninopla/Bizâncio, tendencialmente autocéfala, pugnava por uma “preferência” pela Pentarquia.

Tensões seculares, diferenças políticas e de interpretação teológica, distanciamento entre Roma e Constantinopla, eram evidências históricas antes do ano Mil. A Igreja Bizantina manteve-se linearmente clássica, helenística, não romano-germânica como Roma. Era a chamada Igreja de tradição e rito grego, a Cristandade helenística. Roma virou-se para o Sacro-Império e “esqueceu” os irmãos bizantinos, acusava-se a Oriente. Roma opunha-se ainda ao cesaropapismo bizantino, isto é, a subordinação da Igreja a um chefe secular, como acontecia na Igreja de Constantinopla. Depois virão as questões teológicas, as mais fracturantes, porventura, como a do “Filioque”. E a ruptura.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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