Os últimos concílios no Oriente
Para as crises mais graves, para as controvérsias mais acesas ou duradouras, a Igreja respondeu sempre com concílios, ecuménicos principalmente. As querelas teológicas foram sempre uma realidade na Igreja antiga, antes do ano Mil. A Oriente, no Império Romano, ou Bizantino, eram frequentes. A Ocidente, na fragmentação surgida com as invasões germânicas e com as tendências “nacionalistas” ao nível eclesial nos novos reinos nascentes, as controvérsias iam-se diluindo, para mais com o espectro do Islão a aproximar-se inexoravelmente da Península Ibérica. Mas as divisões criadas pelas querelas teimavam em subsistir, algumas antigas. As tensões religiosas criavam divisões. Destas, por seu turno, tinham consequências políticas. Como foram a criação de várias igrejas autocéfalas, ou nacionais, separadas, em reacção ao cesaropapismo (imperadores com poderes religiosos). O Monofisismo, como já vimos, só num meio conturbado e dividido como este podia subsistir ainda.
Uma nova controvérsia teológica surgiu então no horizonte, no séc. VII, embora com raízes antigas. Afinal, Cristo tinha uma, ou duas vontades? Era o Monotelismo. Opunha-se ao Nestorianismo, que proclamava existir em Jesus duas pessoas, a divina e a humana. Esta última heresia foi condenada no Concílio de Éfeso, em 431. Mas não desapareceu. Apareceu um monge de Constantinopla, Eutiques, que defendia que havendo uma só pessoa em Jesus Cristo, também devia haver uma só natureza, admitindo que a humana fora absorvida pela divina. Nem todos se convenceriam desta proposição, mantendo-se no Nestorianismo. Até hoje. Mesmo com as condenações do Concílio de Calcedónia, em 451.
Depois, para aumentar a polémica, o Patriarca Sérgio I de Constantinopla, com a intenção de integrar os monofisitas, proclamou que em Jesus Cristo, embora havendo duas naturezas, só havia uma vontade, pela identificação perfeita da vontade humana com a vontade divina, o que ficou conhecido na história das heresias por Monotelismo. A questão foi debatida no terceiro Concílio de Constantinopla, em 681. Alguns acham que se esclareceu, mas na realidade a controvérsia continuou.
A Ocidente, a condenação do Monotelismo foi clara. Mas ainda não era definitiva. Um novo Papa, Martinho I, afirmou, num concílio em Latrão, Roma, em 649 (ano da sua eleição) que em “Cristo há duas vontades e duas atitudes, divina e humana”. A reacção foi brutal, nunca vista e inusitada no excesso. Constante II, imperador bizantino, mandou o exarca Olímpio aprisionar o Papa. O que aconteceu. Martinho I foi levado para Constantinopla, onde foi encarcerado, vexado, torturado e depois condenado ao degredo, morrendo no exílio na ilha grega de Naxos, em 655. Por ter condenado uma heresia! A Igreja considerou-o, justamente, mártir, tal como Máximo o Confessor, que condenou o imperador e a heresia. Máximo morreu em 662, com oitenta anos, mas brutalmente martirizado, depois de sevícias e torturas, a amputação de um braço e o arrancar da língua. Por condenar a heresia!
A querela monotelista terminaria apenas no Concílio de Constantinopla III (680-81), embora não completamente. Todavia, naquele concílio proclamou-se de forma explícita a existência em Cristo de duas vontades naturais, “sem divisão, sem mudança, sem separação, sem confusão”. Afirmava-se assim o preceito das duas naturezas na unidade de uma mesma Pessoa, “um Cristo operante”, afastando-se o espectro do Nestorianismo.
Os últimos concílios orientais
Um dos últimos prendeu-se com um tema já aqui tratado, que suscitou fortes paixões e exacerbadas posições, inflamadas e fracturantes. A questão das imagens, ou crise iconoclasta. Ao carácter catequético e salvífico das imagens sobrepôs-se a política imperial, com Leão II, o Isáurico (713-741), que mandou eliminar imagens e os monges que as faziam, além de todos os fiéis que as adoravam. A legitimidade das imagens venceu, no Concílio de Niceia II, com o apoio da imperatriz Irene e de Roma. A imagem possui uma capacidade real de representação. A Encarnação torna assim Deus visível dentro das limitações da natureza humana, pelo que representá-Lo na sua forma humana é confessar que encarnou realmente e não de forma aparente. Esta é a primeira doutrina sobre as imagens sagradas, com base nas Escrituras e na Tradição. E a vitória sobre os iconoclastas.
Mas só no século seguinte, no IV, a pacificação em torno das imagens vingou, a definição da sua natureza, função e veneração foi assumida teológica e doutrinalmente.
Os dois últimos concílios orientais reuniram-se nesse século IX: Constantinopla IV (869-70) e V ((879-80). Roma só reconheceu o primeiro como ecuménico… Mais uma questão para a polémica entre Roma e Constantinopla (Bizâncio). Porquê? Porque ambos se centraram apenas em questões do Patriarcado de… Constantinopla, e quase em torno de um só nome: Fócio. Que foi o Patriarca iconoclasta do século anterior. O primeiro concílio referido serviu essencialmente para o condenar. O segundo para o reabilitar. No segundo está presente, de forma latente, o conflito entre Roma e Constantinopla. É cada vez mais evidente, aliás. Os orientais não aceitavam nem suportavam a pretensão romana de primazia; o Papa, Roma portanto, não se predispunha a que uma metrópole (sé, ou sede) fosse mais importante essencialmente por motivos políticos. O que levava à prepotência e arrogância. Roma não alinhava nesse desiderato. Pois era Fócio quem sustentava que a importância das sedes eclesiais deveria ser determinada pela importância civil, logo política, das cidades. Moscovo, mais tarde, por exemplo, advogará a mesma tese para se afirmar perante outras sedes metropolitas.
Roma, porém, responderá sempre de forma veemente: a Santa Igreja de Roma é a cabeça de todas as Igrejas, de toda a Igreja, pois foi fundada por Pedro, seu primeiro bispo, porque nela deixou a sua herança e a sua tradição, porque nela se encontra a sua sepultura e porque nela continuam a viver os seus sucessores. Os contextos históricos, culturais, mentais, psicológicos, fariam o resto no afastamento progressivo entre Roma e Constantinopla.
Os concílios podem ter sido dominados por padres orientais, tornados ecuménicos porque estavam lá legados do Papa romano. Mas mesmo assim eram sempre importantes para clarificação doutrinal, para o avanço da Teologia, porque havia discussão, debates, confrontos, mas era assim que a Igreja se solidificava. Embora se semeassem controvérsias. E a separação entre Roma e Constantinopla crescia…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa