A Igreja e a Ciência – IV
Começou-se a pensar, em meados do século XIX, que afinal a Bíblia, ou melhor, o Génesis, não era uma narrativa exacta dos acontecimentos que criaram o Universo, o mundo, o ser humano. Não era uma descrição exacta, literal e muito menos científica, factualmente positiva, mas, pelo menos, uma metáfora, uma narrativa simbólica, que era necessário acima de tudo interpretar e não ler e acatar de forma literal e servil. Muitos cristãos começaram a intuir que não se deveriam assim fazer interpretações literais das Sagradas Escrituras. E perceberam que não é um mero acaso o facto de que no Génesis existem duas descrições que não são iguais… A acção criadora de Deus no processo de evolução tornou-se num tópico cada vez mais encarado pelos teólogos, um tema a encarar de forma concreta e não despicienda.
As dificuldades criadas por Darwin eram evidentes. Parecia que Deus já não era o Senhor da Criação, do mundo, substituído pela selecção natural das espécies e pela lei do “mais forte”. Era o fim da tradicional Providência, ou parecia ser. E a História da Salvação parecia que tinha que ganhar uma nova narrativa. Tudo estava em causa. O relato da Bíblia quanto à Criação estava sólido havia séculos, intocado e intocável, considerado como um dogma infalível. Colocar em dúvida a bela história de Adão (que etimologicamente até significa “homem”) e Eva (o “sopro”… criador de Deus…) era o cúmulo da contestação à secular História da Salvação. Os fundamentos desta pareciam ruir. Adão era uma fábula? Eva um mito? Abel e Caim, e por aí fora, tudo mitologia profana?
A partir daqui, muitos consideravam incompreensível uma série de conceitos e valores históricos, perenes, nunca contestados: a ideia e existência do mal na terra, logo a vinda do Salvador, ou Redentor, e a sua obra redentora, o Bem… Afinal, tudo isto podia não ser verdade e nunca ter existido. Daqui a duvidar de Deus e a negá-lo, foi rápido…
O QUE SIGNIFICAVA “TUDO”, AFINAL?
Sim, é a questão que assaltou os espíritos. Não é uma heresia como as que já aqui falámos, não é um cisma, não é uma ruptura, até nem é uma crise, é sim o pior momento da História da Igreja. Os seus fundamentos, quis alicerces, estavam a ser atacados e negados num piscar de olhos, de rajada. E em cada obra, mais ruíam, com eles as estruturas e a obra de toda uma história. Nunca Deus fora posto em causa nas heresias: apenas a instituição o foi, o fundamento jamais, podemos dizer. Nesta querela com o mundo da ciência, Deus parecia moribundo para os mais cépticos. Mas não se chegou sequer a tal.
Muitos crentes não consideraram inaceitável a hipótese evolucionista, e muitos não perderam a fé, mesmo assim. Pelo contrário. O cardeal Newman, uma das grandes figuras do Movimento de Oxford, por exemplo, não recusou a teoria. Mas é bom recordar que grande parte dos fiéis ficou sem chão com a ideia evolucionista, sem referencias.
Mas se analisarmos a História da Igreja, veremos que esta tem a particular virtude da regeneração sem perda de horizonte ou de referências, ou de sentido. O dom da sobrevivência e do renascimento, da redenção até, é apanágio de uma intuição instituída há quase dois mil anos, continuamente… Assim, nesta crise profunda espoletada pela teoria evolucionista, corolário de dois séculos de revolução da ciência e choque com a Igreja, nesse contexto começaram a sentir-se novas atitudes por parte da Igreja em relação à Ciência. E evolução nos estudos, como por exemplo, na exegese bíblica, se sentiram a partir de então.
A Bíblia começava a ser um manual científico, um conjunto de textos auxiliares da história, da arqueologia, o Génesis um livro de história escrito na forma própria dos seus autores e do tempo destes, em diferentes contextos. E outras ciências poderiam estribar-se em informações exaradas dos textos das Escrituras: biologia, geologia, sociologia, antropologia… Os cristãos intuíram então que a Bíblia apenas queria declarar que o mundo fora afinal criado por Deus, sim, e a forma utilizada para demonstrar tal verdade eram os termos próprios que a cosmologia, a “ciência” dos tempos da sua escrita, permitiam e se faziam usar. Era necessário ler nas entrelinhas, era preciso ir para lá do texto e avançar na ciência. Os textos eram intermediações “cifradas e codificadas”, em metáfora, para se chegar a uma realidade não escondida, mas que necessitava de esclarecimento, de ciência…
E Galileu tinha razão afinal, cada vez mais para muitos cristãos: a Bíblia não tinha intenção alguma em ensinar ou demonstrar cientificamente como é feito o céu, mas apenas se cai para lá, “para o céu”… A Bíblia não é um manual ou repositório de ciência, não se deve lê-la para encontrar verdades e certezas científicas. É mais do que aparenta, a Bíblia…
A realidade pode ter um carácter enigmático, reconhecia-se cada vez mais na ciência, na segunda metade do século XIX. Eram novos ventos que sopravam, amenizando a radicalidade absoluta dos positivistas, da nova ciência que tudo punha em causa e se escravizava cegamente ao facto, ao empirismo, nada mais havendo para além da fria materialidade das evidências possíveis. A realidade era passível de leituras não científicas, não era um exclusivo da ciência, havia vida para além desta… e realidade. Eram até os cientistas que mais chegavam a estas conclusões. O radicalismo severo mitigava-se na evolução, da própria ciência, diga-se. A humildade e a temperança ganharam posições, entre os cientistas, mas também entre os cristãos, evoluindo até hoje no reconhecimento das limitações de cada um dos campos em “contenda”, conhecimento científico e conhecimento religioso, chamaríamos assim…
Limites e autonomias são hoje cada vez mais respeitados, de facto, embora haja feridas e fracturas. E principalmente nas aplicações sociais e mundanas que a ciência produziu. Na actualidade, a ciência é de facto um repto maior e continuado à moral cristã. Temas como a fecundação artificial, a clonagem de seres humanos, a eutanásia, por exemplo, apenas para colocar alguns, suscitam entre os cristãos problemas na relação da genética e da moral, debates sérios e diatribes acesas e polémicas.
O envelhecimento gradual da população no mundo dito “desenvolvido”, em oposição à explosão demográfica no mundo “oposto”, cada vez mais jovem, com todos os problemas de distribuição equitativa da riqueza, dos alimentos e dos recursos, da justiça e da paz, assumem-se como polos de discussão entre a Igreja e a Ciência, ou as implicações que desta derivam na concepção e organização do mundo moderno e a forma como os cristãos assumem essas “dores de crescimento” da humanidade. Ou na ecologia, onde a Igreja tomou posição a partir do topo, do papado (encíclica “Laudato Si”, 2015), com o Papa Francisco a questionar “que mundo vamos deixar às nossas crianças”, ao futuro…? Afinal, a Igreja e a Ciência sabem dar as mãos e pensar o mundo, a vida, a Terra, a humanidade, numa nova perspectiva metafísica…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa