Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXIII

A Igreja e a Ciência – III

A Fé estuda as causas, o porquê das coisas, dos fenómenos, enquanto a Ciência se detém no “como”, no processo. Não, não é uma provocação, é antes uma constatação da relação histórica entre o Cristianismo e a Ciência. Para a Igreja, antes de se conhecer o “como”, é importante conhecer previamente o porquê. Os cientistas, como Galileu e outros do seu tempo, e depois a Ciência, tiverem sempre como objecto próprio o estudo dos fenómenos, o “como”, as causas segundas, o modo. A Igreja, acima de tudo, procura o estudo e a determinação do sentido último das coisas, de tudo. Chegar a esta distinção, a esta consciencialização, foi o mais difícil, talvez. Foi duro, mas as consequências estão à vista e inegáveis, por ambas as partes: a autonomia completa da Ciência em relação à Fé.

Aí residia o problema. A emancipação dos métodos científicos, da ciência enfim, face à vigilância teológica, da Igreja portanto, era perigosa. A Igreja não o concebia sequer, nunca tal se tinha visto, ou sequer pensado. O maior perigo dessa ausência de supervisão ou vigilância da Igreja era a emancipação dos resultados que a ciência obteria. E, consequentemente, o mundo podia cair na laicização. Como aconteceu.

É complexo. Se pensarmos que para a maior parte dos teólogos, ou os que pensavam no assunto, Deus e a natureza estavam ao mesmo tempo unidos mas separados, indissoluvelmente. Ou vice-versa. E para se estudar uma coisa sem a outra ficava-se perante um problema grave. Significava, pelo menos, a não compreensão de seja o que fosse e cair no erro de se acreditar que a natureza possa existir sem Deus. O que era impensável até então.

 

O DRAMA NA CONSCIÊNCIA CRISTÃ

A consciência cristã estava no século XVII dividida entre a nova ciência, as novas metodologias e discursos científicos, diríamos, e as exigências religiosas. Talvez a mais das inquietadas figuras desse tempo tenha sido um dos maiores expoentes das ciências exactas de todos tempos, o cientista e teólogo católico francês Blaise Pascal (1623-1962). Morreu com apenas 39 anos mas deixou atrás de si um lastro luminoso de conhecimento e ciência, que ainda hoje cintila na galáxia dos sábios e continua actual e decisivo nas áreas em que deixou obra e teoria. Pascal foi um dos mais inquietos espíritos do seu tempo. Sofreu na sua existência e procura de conhecimento a tensão constante e dolorosa entre as duas ordens de verdade, a Fé e a Ciência. Não procurou provar que era fácil harmonizá-las, de dar as mãos de forma simples ao Deus da Bíblia e ao Deus dos cientistas, mas tentou explicar a dialéctica e tensão entre ambas, ciência e fé. Um confronto que gerava ansiedade, curiosidade e esforço constante, em Pascal e não só. Este sábio francês assumiu-se toda a vida como católico, refira-se.

O Deus de Abraão e de Isaac, de Noé e da Bíblia, falava ao coração de Pascal, se quisermos metaforizar, enquanto o deus da matemática, do cálculo infinitesimal e das ciências exactas, tocava na inteligência racional e empírica. Inquietava, criava ansiedade esta disputa, procurar Deus nos espaços infinitos que o estudo da astronomia desvendava ou revelava. Mas não se encontrava ciência pura e exacta no sacrifício e em Isaac, no perdão e na esperança, inquantificáveis e fora do domínio da matemática. Por isso muitos Iluminados, enciclopedistas e outros, como D’Alembert, por exemplo, defenderam no século XVIII que tanto a ciência como o progresso que dela resulta são contrários à Revelação, que não conseguem provar ou equacionar fisicamente. Depressa o mundo cristão, por essas posições, os crivou com labéus pouco abonatórios, atirando os seus nomes e ideias para os montulhos dos corruptos e dos libertinos, dos loucos. “Black and White”: o mundo vertia perigosamente para esta dicotomia, se não era preto, só podia então ser branco, e vice-versa.

Nos finais de Setecentos pareciam soprar outros ventos de equilíbrio nesta controvérsia. Desengane-se o estimado leitor, todavia. Caía-se sempre na vertigem da luta e confrontação. De facto, muitos cientistas começaram a ir para lá dos limites da ciência, entraram no estudo da metafísica, do que não é físico ou matéria. E atiraram logo: com a ciência, atenção, prova-se que afinal Deus não existe sequer! Não se saía da esfera do já secular confronto entre ciência e fé. Nesta senda, os positivistas e os adeptos do cientismo, no século XIX, assumiram o objectivo de liquidarem a religião, que apodavam de fóssil de uma época caduca e finita…. A eles se juntaram os adeptos do materialismo alemão e do agnosticismo inglês, como Spencer, ou Stuart Mill. Mas também é importante recordar que muitos cientistas cristãos mantiveram as suas investigações e não se preocuparam com estas diatribes, trabalhando em liberdade e sem problemas de consciência. Muitos sacerdotes, seculares ou religiosos, continuaram a desenvolver investigação científica, nos colégios e demais instituições eclesiásticas, alguns até no anonimato e solitude das suas paróquias, remotas. Botânica, zoologia, matemática, álgebra e geometria, química até ou geologia, eram algumas das ciências exactas que atraíram muitos clérigos. Eram matérias ensinadas em seminários e colégios católicos. Mas a tensão manteve-se viva entre religião e fé. As excepções não aliviaram o aceso dos debates e a radicalidade de posições assumidas.

Em meados do século XIX, apogeu dessa tensão, parecia que tudo estava a ser feito pelas ciências exactas, pela filosofia e pela história, para se acabar com o Cristianismo. Ou porem em crise a fé. Um teólogo veio colocar sérias dificuldades à teologia tradicional, às concepções de todos os tempos. Charles Darwin (1809-1882), com efeito, partiu tudo, sem o querer fazer, porém. A sua obra “A Origem das Espécies” (1859) acabou por ser uma das obras-chave no “ataque” que o Cristianismo sofrera. E que mudaria tudo para sempre. Se o homem descendia do macaco, então como se podia continuar a defender que o mundo era fruto de um Deus inteligente, que é amor e que por isso tudo previra na Criação? Então se por isso Adão e Eva jamais existiram, como se podia explicar a existência do pecado original e, assim, a necessidade de um Redentor, e Cristo, da santidade, etc.? Deus, era neste sentido, ao que parecia, uma hipótese científica… desnecessária. Era talvez o mais terrível “ataque” dirigido à Igreja, à Fé, ao Cristianismo, a Deus!

Em vez de seis dias para se criar o Mundo, Darwin mostrava que tinham sido necessários milhões de anos, com uma evolução dos seres de acordo com o princípio da selecção natural. Houve reacções de todos os géneros, da incredulidade atónita à ironia e ao sarcasmo, ou na aceitação efusiva. O que mostra acima de tudo Darwin e as suas ideias? A introdução do relativismo na explicação da criação do universo, sem o absoluto de Deus. Que parecia que já não era, pois, o Senhor de uma criação que afinal evoluía segundo a selecção natural, sem nada a ver com a Providência, tal como se explicara durante séculos. Quase tudo ruiu. Quase, apenas. A fé, essa, continuou!

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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