Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXI

O Cristianismo Iluminado II

O Cristianismo Iluminado, na sua matriz católica, não deixou de se afirmar culturalmente. A sua elitização radica também na tendência, por parte de muitos clérigos que a ele aderiram, de se afirmarem através de uma erudição teológica. Ou seja, no afinco com que publicaram livros de teologia e estudos eclesiásticos em geral, com destaque para as Sagradas Escrituras e filosofia, para formação de pregadores.

O esforço de renovação que se pretendia impor passava pela cultura e formação teológica. Novos manuais ou obras referenciais impunham-se na pedagogia reformista. Os padres jansenistas, que eram uma boa fatia dos sacerdotes que aderiram ao Iluminismo de matriz católica, chamemos assim, defendiam por exemplo uma concepção comunitária da Igreja, na qual a instrução individual de cada cristão era importante de forma a desenvolver-se uma piedade robusta e esclarecida. Defendiam o conhecimento e estudo continuado da Bíblia como base de pregação e da piedade familiar, através da leitura individual das Escrituras, que se devia exercitar entre os fiéis.

 

Uma elite católica

Mas não apenas a Bíblia. Autores referenciais da teologia deveriam acompanhar a exegese bíblica, como Santo Agostinho, ou filósofos mais recentes como Pascal ou Arnauld, que se tornam mais lidos que nunca e muito procurados. Muratori, em Itália, seria um dos autores mais emblemáticos desta tendência reformista católica. Roçando a ortodoxia à luz dos ideais católicos “iluminados”, acabou por não ser sempre um teórico em procura de equilíbrios, defendendo mesmo posições pendendo para os extremos.

Nem todos, de facto, mantiveram essa procura de equilíbrio, quando tentavam defender a mudança de usos e costumes na Igreja. Faziam-no de forma a criarem oposições radicais e condenado sem tréguas nem concessões os usos e tradições de Igreja. O que criava injustiças e rupturas, condenações por parte da hierarquia católica e principalmente dos fiéis, que aceitavam mudanças mas não de forma drástica e com discursos racionalistas que para a maioria dos crentes eram ininteligíveis e se assemelhavam com os processos antigos por todos rejeitados. O equilíbrio próprio para uma reforma era pois difícil nesta radicalização de posições.

Muratori, recorde-se, afirmava que a Bíblia, em certos aspectos e em certas exegeses e hermenêuticas, até se adaptava às concepções mais populares, ajustando-se à forma de expressão comum de cada época, em particular no século XVIII. A autoridade e dimensão literária da Bíblia era um dos temas de debate mais acesos entre o mundo cristão, católico ou protestante, pois os enciclopedistas e os filósofos deístas, por exemplo, recusavam o sentido mais literal, que era, porém, acolhido pelas massas populares.

Mas nem sempre os ventos foram de luta. Há consensos também. Por exemplo, a relativa aproximação entre o pietismo e o racionalismo na Alemanha ajudou a criar uma liturgia mais simplificada, purificada, mais comunitária, ascética até, mas mais devota e interiorizada, mais ecuménica, criando certos laços entre católicos e protestantes. Refira-se que esta aproximação evitou, no Iluminismo alemão, o resvalar para o anti-clericalismo, ao contrário da França, por exemplo. Os alemães pautaram-se por um espírito mais fraterno e acolhedor, mesmo que erudito e dotado de grande dinâmica.

A História ganhou também nesta época uma importância capital. E a atenção dos católicos iluminados. De certa forma, por motivos apologéticos, isto é, de defesa da Igreja e da justificação de posições através da História. E na aproximação ao Cristianismo antigo, era imperativo o conhecimento histórico. As controvérsias com protestantes e iluministas anti-religiosos ou, o que é diferente, anti-clericais, alimentaram essa procura do conhecimento histórico. Mas sem derivas espirituais ou desvios na ortodoxia. Os bolandistas (jesuítas) na Bélgica, os beneditinos mauristas (congregação de São Mauro), entre outros, são exemplos da erudição católica inspirada, positivamente e sem rupturas, no Iluminismo. O espírito da renovação católica dava maior ênfase ao passado, à tradição e seu valor e exemplo, tendo “esquecido” de certa forma as ciências exactas e naturais, baseadas em novos métodos, mais indutivos, baseados na experimentação e na observação.

Mas não significa que os círculos eruditos católicos se tenham esquecido desses métodos. Todavia, não os desenvolveram muito. Alguns autores vão estudar a Bíblia sem a fé e a teologia, por exemplo, considerando o grande livro e seus conteúdos de forma autónoma e sem interferências de natureza religiosa. A linguística foi o recurso principal, não a teologia. A tradição era importante, mas vista e analisada de forma crítica. Criava-se uma exegese mais científica, que faria caminho, criando-se aqui a figura de Richard Simon nesse sentido. Mas as suas ideias e métodos foram condenados pela hierarquia… mas não foram esquecidos.

Pascal, um filósofo da época, lutou também por atrair os iluminados libertinos e desviados da ortodoxia, para a religião de Cristo, demonstrando que o homem só encontra explicação de si mesmo na religião, evidenciando ainda que o Catolicismo era o que melhor se identificava com a dupla natureza humana. Ou seja: a grandeza e a fraqueza. A primeira deriva da Criação e a segunda do pecado original. Pascal falava ao mundo no coração, na fé e nos sentimentos, na intuição, num mundo que era então cada vez mais dominado pela razão e pelo método. Recordava, com sensatez e equilíbrio, que era também imperativo evitar os dois maiores excessos da época: a exclusão da razão e a exclusividade da razão. Admitir apenas a razão era tão perigoso e nefasto quanto refutá-la ou negá-la. Deus, afinal, só se conhece através de Cristo, do coração também, do amor afinal. Foi Pascal que disse que o «coração tem as suas razões, que a razão desconhece». Ou não quer conhecer.

Os católicos iluminados subsistiram, mas foram sendo assimilados pela ortodoxia, não caindo assim nas garras da heresia. Mas a cultura e a erudição, a razão e a ciência não se desligaram mais da fé e da religião.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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