Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LX

O Cristianismo Iluminado I

O século XVIII é um dos mais fecundos tempos da História da Igreja e do Cristianismo em geral. Fecundo em irrupção de movimentos de tendência nacional, galicana, do ponto de vista institucional, mas também de movimentos de cariz espiritual e filosófico. Estes são produto das Luzes, a que se chama também Iluminismo ou Ilustração. Os movimentos, ou tendências, de carácter institucional são já próprios do Absolutismo, o grande sistema político da época das Luzes. Ambos se fundem por vezes, ambos colidem. Mas em tudo isto, surgiu um Cristianismo Iluminado, uma forma de adaptação religiosa aos ventos deístas e racionalistas que surgiram. Ou de ruptura e choque, por outro lado. Tudo mudaria, na Igreja Católica como nos demais ramos do Cristianismo.

Se tomarmos o Iluminismo no seu sentido filosófico, racionalista portanto, ou deísta, como já aqui vimos, será difícil encontrar um grupo ou movimento no seio da Igreja Católica a tentar articular os princípios iluministas e a vida eclesiástica. É manifestamente difícil conseguir tal articulação, para muitos até impossível. Mas também é verdade que maior liberdade e tolerância trazidos pelo Iluminismo, a par da racionalização da vida social e até religiosa, tocou alguns sectores católicos, algum sentimento religioso dentro da Igreja. Como eco dessa influência, recorde-se a defesa que alguns sectores fizeram da purificação da Igreja, no sentido de a despir do triunfalismo e fausto barrocos, da sua conexão com o poder, que ambicionava até, tal como das riquezas e sumptuosidade no estilo de vida, muito longe dos princípios que norteavam a Igreja Primitiva, por exemplo. A simplicidade desta era o mote para uma purificação da Igreja, processo esse em que alguns princípios iluministas eram bem acolhidos por alguns sectores católicos.

 

O Iluminismo Católico

Eram imperativas as reformas, urgentes. Defendiam aqueles sectores. Reformas que levassem a um maior diálogo com o mundo de então e com a Ciência. Assim era o Iluminismo Católico, cujos princípios reformistas se identificavam muitas vezes com o Galicanismo ou o Regalismo.

Este Iluminismo Católico seguia algumas correntes. Muitas destas correspondiam a uma universidade, normalmente. Universidades que tinham sido defensoras de uma teologia episcopalista (reforço do poder dos bispos, ao nível regional) ou uma eclesiologia mais descentralizada. Lovaina, na actual Bélgica, era uma dessas universidades e centros de pensamento teológico. Outras correntes, para além da via universitária, estavam ligadas à tradição jansenista, mais rigorista, mas também favorável a correntes reformistas. Não foi, afinal, em Lovaina que surgiu o “Pastor Bonus”, o grande manual dos reformadores do Iluminismo Católico? Ou a obra de van Espen, um reformador católico que pugnava por um retorno à Igreja Primitiva, o que justificava per si um conjunto de reformas importantes a nível eclesiológico.

A História da Igreja era altamente valorizada por este reformismo iluminado, baseado numa teologia positiva, além de combater superstições, lendas e crenças populares. Estava mais compaginável com o discurso e método científico. Insistia na superioridade e necessidade de uma religião revelada, na pedagogia moderna, na teologia natural e no modelo da Igreja Primitiva. Era anti-deísta, com uma apologética moderna, além de defender uma actividade pastoral mais funcional e coordenada, eficaz.

Depois, no esforço de simplificação da vida religiosa e a luta contra o fausto barroco, procuraram reformar a liturgia, começando no breviário. Nas igrejas, por exemplo, começaram por suprimir os altares laterais, proibiram as missas simultâneas, além de uma quase aniconismo, ou seja, despindo os templos de imagens de santos e da Virgem, que no Barroco quase que assumiam um “horror vacuum” (“horror ao vazio” e entupiam os espaços litúrgicos com mil e uma formas de expressão artística, altares, etc. As devoções populares foram também abolidas ou criticadas, na sua maior parte, no quadro desta teologia natural e positiva, reformista. Tal como aconteceu com as peregrinações, limitadas que foram. O povo, porém, era cada vez mais convocado a participar nas celebrações, através, por exemplo, do uso das línguas vernaculares (ou locais, nacionais, em vez do Latim) nos cânticos, orações e em boa parte da liturgia.

Estava-se numa atmosfera de racionalização da vida na Europa, o Jansenismo, apesar de ter sido combatido e mitigado, não desapareceu e deixou marcas. Apesar deste esforço de reforma e simplificação, racionalização enfim, da vida cristã, assistiu-se à elitização de alguns clérigos, iluministas, que acabavam por criar um fosso entre esses nichos intelectuais do Catolicismo Iluminado e o povo que desconhecia estas novas correntes e que permanecia ligado à Santa Madre Igreja na sua forma mais tradicional. Tudo isto significa assim que esta nova corrente reformadora do Iluminismo não passou de minoritária, elitista até e circunscrita a nichos intelectuais muitas vezes, além de se centrar mais no Norte da Europa.

A maioria dos prelados, por exemplo, mantinha-se dentro da sua missão de acordo com a tradição, com dignidade e consciência. Muitos tinham espírito reformador e estavam cientes de todos ventos que sopravam na Igreja das Luzes, mas não pensavam sequer em libertar-se do modelo no qual construíram o seu múnus. Mas não deixavam de tentar promover a instrução do clero, que pretendiam mais activo e pastoralmente mais eficaz. Por isso, não foi raro assistir-se a esforços como catequese de adultos, reforço da assistência pública, além de reflexões e tomadas de consciência acerca da utilidade e necessidade social da religião, pois consideravam-na a base de toda a sociedade e a reserva de moral colectiva e individual. As notas pastorais de bispos eram cada vez mais frequentes, além de se constatar todas estas insistências nas constituições do clero que eram elaboradas e reformuladas sucessivamente. Aí se notará como, mantendo o apego à tradição, os prelados mantiveram-se atentos e incorporaram princípios de reforma e renovação da vida eclesial.

Neste Iluminismo Católico recorde-se o papel renovado dos sacerdotes, tidos cada vez mais como os pedagogos das comunidades, do ponto de vista religioso e social. Há pois um reforço do clero diocesano em detrimento das ordens e congregações religiosas, principalmente as contemplativas e de clausura, consideradas pouco activas e pastoralmente retraídas. Não apenas estas mas também as de vida activa, desprezo geral este que ganharia uma expressão dramática com a Revolução Francesa. Por isso os jesuítas foram perseguidos e abolidos sem que houvesse alguma reacção maior ou consternação que fosse….

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *